GAZETILHA

Cara de paisagem

Enquanto Gilson diz que Franca "está superando" o coronavírus, os números mostram um crescimento de 354% no número de infectados e 425% nos óbitos provocados por covid-19 apenas na cidade. Por ironia do destino, quem pode salvar Franca é justamente a região que Gilson tanto condena.

02/08/2020 | Tempo de leitura: 7 min

“A dificuldade é um severo instrutor”

Edmund Burke, filósofo irlandês

 

As últimas notícias sobre o combate à pandemia em Franca não são boas. Todos os principais índices são negativos. Cresceu de forma significativa, ao longo do mês de julho, o número de novos casos confirmados (354%) e de mortes por conta do coronavírus (425%). Os leitos de UTI do SUS, oferecidos na Santa Casa, passaram praticamente o mês inteiro com 100% de lotação. Na rede particular, a situação de intensa pressão sobre o sistema, com taxas de ocupação acima de 80%, também marcou o mês que acaba de terminar. Some-se a tudo isso a resistência de parcela significativa da população em aderir a medidas voluntárias de distanciamento social - na média, o índice se manteve na casa dos 41% - e tem-se o cenário perfeito do caos.

 

A atualização semanal das fases de flexibilização e retomada da economia dentro do Plano SP, anunciada pelo governo do Estado na última sexta-feira, mostra que a situação da região de Saúde de Franca é frágil e a perspectiva, ruim. A decisão sobre a classificação das 22 regiões de saúde será anunciada na próxima sexta-feira. Se fosse hoje, continuaríamos, por mais 15 dias, na fase mais restritiva de uma quarentena que ultrapassa os quatro meses e provoca desgaste em todos – tanto nos que a combatem, como também entre que sabem que é necessária. Outras 18 regiões estariam em situação muito melhor do que Franca, Ribeirão, Piracicaba e Registro, com comércios abertos, bares e restaurantes retomando as operações, academias autorizadas a funcionar. Nada disso está próximo de nós.

 

Diante de tudo isso, a dedução lógica leva à conclusão de que o prefeito de Franca, Gilson de Souza (DEM), deveria estar preocupadíssimo com o andar da carruagem. Debruçado sobre números e planilhas, falando ao telefone sem parar com lideranças políticas, o prefeito lideraria a luta para implantar, a fórceps se necessário, os leitos de UTI que são fundamentais para Franca garantir condições de atendimento a quem precisar – e, também, para avançar rumo a fases menos restritivas. Traria consigo nesse esforço todas as forças da cidade, ainda que alguns sejam desafetos históricos, num movimento suprapartidário capaz de mostrar de forma inequívoca ao governo paulista que Franca merece respeito, atenção e suporte.

 

No tempo que sobrasse, Gilson estaria reforçando não apenas a importância do isolamento social, mas respaldando, com palavras e ações, o fundamental papel da Vigilância Sanitária e da Guarda Civil para coibir os abusos, interromper festas e jogos de futebol, multar bares que operam clandestinamente e conter aglomerações.

 

Mas, afinal, o que de fato tem feito o sumido prefeito Gilson de Souza para tirar Franca de onde está? Nada do que poderia se esperar. Perdido em devaneios tolos e reuniões inúteis, o prefeito pouco fala. Quando abre a boca, é para dizer bobagem, como quando resolveu gravar um depoimento ao lado da vereadora Cristina Vitorino (Republicanos).

 

Foi na quinta-feira, 30 de julho, que Gilson quebrou o silêncio. Aparentemente a pedido de Cristina, incomodada com a repercussão da discussão de medidas mais restritivas, o prefeito veio a público para descartar o lockdown que eu havia proposto. Disse, com todas as sílabas, que “não há a menor chance de haver lockdown”.  Não propôs nada no lugar. Ou, melhor, para ser absolutamente justo, quase nada.

 

As únicas sugestões de Gilson para a população que acompanha atônita o que acontece foi para que haja “conscientização”, “união” e “oração”. Nada mais. Nenhum outro esboço, nenhuma medida alternativa, nenhum prazo para analisar os dados e tomar alguma outra posição. Absolutamente nada além de “conscientização”, como se fosse possível mudar alguma coisa depois de 140 dias de quarentena apenas pela simples sugestão; “união”, como se precisasse de mais tempo para que ele se juntasse aos deputados Roberto Engler (PSB) e Graciela Ambrosio (PR) numa ação coordenada; e “oração”, sempre importante mas que não é exatamente medida de combate ao coronavírus.

 

Para piorar, o prefeito virou um simulacro de Bolsonaro ao dividir com a população suas impressões sobre a pandemia. Foi num longínquo 12 de abril que o presidente da República, numa live de celebração religiosa, compartilhou com a nação sua profunda sabedoria e incomparável capacidade de análise. “Parece que está começando a ir embora a questão do vírus”, disse, na ocasião, Bolsonaro.  "Precisamos cada vez mais de liberdade. O país precisa ser informado do que realmente está acontecendo. E não através do pânico, mas através de mensagens de paz, de conforto, cada um se preparar para a realidade”. Naquele instante, o Brasil contabilizava exatos 22.169 casos confirmados e 1.223 mortes. Três meses e meio depois, nos aproximamos de 3 milhões de infectados e de cem mil mortos. Bolsonaro jamais pediu desculpas pelos seus erros de avaliação e continua dizendo que é preciso “informar corretamente”, como se os dados e os fatos não o desmentissem copiosamente.

 

Gilson vai pelo mesmo caminho no vídeo desta semana. “Nós precisamos pedir muita oração, orar muito, pedir muito a Deus para que a gente possa - Deus dá a sabedoria - encontrar o melhor caminho. O momento agora é de união”, disse Gilson de Souza. “(Para) lutar contra esse adversário que é o vírus, que é um adversário muito forte, precisamos de união. Precisamos de união de todas as lideranças da cidade, lideranças também da Câmara de Vereadores, para que a gente possa levar a informação correta à população. É muito importante.” Para completar suas reflexões, vaticinou. “Eu vejo que, se Deus quiser, esse vírus vai passar, ele vai embora. Eu tenho fé em Deus. E a Franca já está superando”.

 

As declarações do prefeito foram dadas exatamente no pior mês da pandemia em Franca, quando todos os índices estão em disparada e nenhuma perspectiva de melhora existe no curto prazo. É de se perguntar que “informação correta à população” ele pretende levar, se todos os números repercutidos pelos veículos de comunicação diariamente têm como fonte exatamente a Vigilância Epidemiológica do município.

 

Dizer que qualquer lugar no mundo estava preparado para a pandemia do coronavírus é o mesmo que mentir. Apesar de alguns especialistas sustentarem há tempos que uma pandemia (epidemia que atinge o mundo todo) atingiria a humanidade num futuro qualquer, tudo não passava de mera especulação. Mas o que os líderes têm feito diante da pandemia diz muito sobre como suas populações têm superado o problema. Quem não teve medo de agir e tomou as medidas necessárias, em qualquer lugar do planeta, colhe agora os frutos de uma retomada mais rápida da economia e de um sistema de saúde que está melhor preparado para lidar com a demanda de doentes. Quem fez cara de paisagem e minimizou o problema, contabiliza mortos aos milhares e tenta culpar os outros por uma responsabilidade que, antes de tudo, é deles mesmos. A lógica se aplica perfeitamente a Jair Bolsonaro. E, no que diz respeito à região de Franca, a Gilson de Souza.

 

Sobre a região, vale uma última reflexão. Apesar de insistentemente tentar responsabilizar as cidades vizinhas pela fase Vermelha de Franca - como se não fosse nosso o dever e responsabilidade de oferecer serviços mais complexos como sede da região que somos - serão justamente os pequenos municípios que poderão tirar Franca do buraco em que a cidade foi colocada. Enquanto Gilson pede “união”, os municípios vizinhos exercem, de fato, poder e influência. No último anúncio feito pelo Estado, 30 leitos de UTI foram destinados para quatro cidades próximas. Serão 5 em Ituverava, 10 em Ipuã, 10 em Igarapava e 5 em São Joaquim da Barra. A promessa é que todos estejam instalados ainda durante o mês de agosto. Juntos, os leitos representam 150% da oferta disponível pelo SUS hoje em Franca.

 

Com sorte, os leitos da região poderão ajudar a diminuir o percentual de ocupação do sistema de Franca. Se não houver novo disparo no número de casos e óbitos, pode ser este o fator decisivo para que a gente avance para a fase Laranja. É uma chance remota, uma perspectiva improvável, mas ainda assim, é a única que existe.

 

Ainda bem que existe a região, onde prefeitos corajosos não se furtaram em adotar medidas drásticas para conter a disseminação do vírus e evitar mais mortes. Se depender de Gilson de Souza, seu mandato chega ao fim com Franca exatamente onde está. No vermelho. Ou pior.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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