Bugalhos

18/07/2020 | Tempo de leitura: 3 min

“Sabe aquele final de tarde de dia cheio no meio de semana tensa; corpo podre; nariz entupido sem resfriado; cabeça pesada? Pois é. Exausta e sem pique, precisava buscar gasolina em algum canto. A solução surgiu quando soube que mamãe havia feito bugalhos para minha sobrinha de seis anos e que não havia instrutor disponível e hábil para ensinar à garota todos os truques do jogo. Tomei banho daqueles de lavar a alma, botei roupa velha, tênis caindo aos pedaços, deixei cabelos molhados e me mandei para sua casa, feito vampira para sugar alegria, espontaneidade, riso solto e muita disposição. Investi-me de técnica na coisa e me autorizei expert no esporte.

Bugalhos são pequenas peças quadradas de tecido, cheias de areia, arroz ou similares, costuradas a mão. Coisa de avó. As regras do jogo são simples: jogue todas pra cima; o opositor seleciona uma, que é jogada para cima enquanto o jogador recolhe todas elas e, uma a uma, as passa dentro do arco formado por dois dedos da mão oposta. Coisa simples... Etapa curiosa e que exige prática, é passá-las sob o arco formado pelo dedão e o fura-bolos da mão contrária, fincados numa superfície. Para complicar, o adversário "escolhe" a derradeira a ser passada, procurando, claro, complicar a vida da gente. Diferente dos brinquedos comprados, os bugalhos exigem cuidado. Primeiro, porque foram feitos manualmente pela avó, especialmente para a gente. Depois, porque são feitos com retalhos escolhidos para combinarem entre si. E devem ser guardados em locais seguros: sumiu uma pedra, comprometeu o jogo. Bugalhos são feitos para durar anos... Começamos o treinamento.

Sentamo-nos no chão e ensinei como jogar e recolher as peças. Ela jogou na frente, pois não tinha pecados e tranqüilamente atirou a primeira pedra. Não acertou. Mas não fez diferença. Não desistiu e insistiu em acertar. Ria muito e ficou feliz ao conseguir apanhar duas, nas costas das mãos. Sabia que ainda havia longo caminho pela frente, ao entender as regras. Mas ao cumprir mesmo que pequena etapa, exultava com a conquista. Não se importava com tudo que ainda estava por aprender. Não foi voraz na busca de suas habilidades. Não sei se ela percebeu o quanto me ensinou naquela noite. Afinal nenhum bom professor avalia a extensão da aprendizagem do seu aluno, assim, imediatamente.

Não sei se ela percebeu que me deu energia suficiente para encarar o resto da semana, pois acabou com meu desejo de fazer tudo ao mesmo tempo. Imagino que ela nem se tocou que me ofereceu, através do seu próprio exemplo, a saudável oportunidade de aceitar minhas falhas e derrotas quando ela repetia, rindo às escâncaras seus movimentos malsucedidos ou frustrados. Não sei se ela aprendeu alguma coisa de bugalhos. Mas deve ter gostado da experiência comigo. Solicitou-me os préstimos novamente e há pouco, pois precisa fazer uma pipa (cor-de-rosa) e quer que eu a ajude. Já comprei o papel de seda, as varetas (hoje em dia vêm prontas, nem precisa mais roubar bambu da cerca do vizinho), a cola (e não grude de polvilho). Já bolei o lay-out da pipa, vou comprar um retrós de linha, arranjar a lata de massa de tomates vazia. Estou com o arsenal completo! Estou prontinha! Por via das dúvidas, adiantando-me, vou começar a treinar cuspe à distância, bolinha de gude e "fincar faquinha": tem outro sobrinho pequeno que mais dia, menos dia, me solicita também. Quero estar preparada, quando ele precisar de mim.”

Isso foi escrito e vivido há muito tempo, quando não existiam Ipads, Iphones, os brinquedos eram de plástico, muitas vezes confeccionados artesanalmente. Resolvemos o problema de ociosidade e de ocupação de tempo de crianças e adultos, com engenharia e arte. Fica a inspiração para estes tempos de confinamento, quando acabarem os recursos eletrônicos. Ainda haverá - e muito - o que fazer para distrair crianças.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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