“Preocupa-se mais com seu caráter do que com sua reputação. Caráter é aquilo que você é, reputação é apenas o que os outros pensam que você é”
John Wooden, treinador de basquete americano
Franca estava numa posição muito privilegiada para o enfrentamento da pandemia. Ainda é cedo para conclusões definitivas sobre o que nos levou a tal condição. Pode ter sido a postura do prefeito Gilson de Souza (DEM) no primeiro instante, quando decretou quarentena quatro dias antes do restante do Estado, criando uma espécie de bolha sanitária para a cidade. Talvez o discurso firme de autoridades de saúde, públicas e privadas, apontando o perigo que estava por vir, tenha sido decisivo para levar a população, naquelas primeiras semanas, a aderir fortemente ao isolamento social, fazendo com que ruas e avenidas de Franca ficassem desertas e diminuindo o ritmo de propagação do vírus. Não é improvável que a localização geográfica da região, sem grandes concentrações de cidades próximas umas das outras, tenha ajudado a impedir que a pandemia ganhasse velocidade excessiva. Há ainda o próprio desenvolvimento urbano de Franca, que fez com que a cidade se estruturasse de forma muito espalhada ao longo do tempo, com bairros distantes entre si e sem grandes concentrações de população, que pode da mesma forma ter impedido uma explosão de casos.
Números ajudam a traduzir quão privilegiada poderia ser nossa condição. Franca tem até hoje 598 casos confirmados e 14 mortes. No mesmo período, Ribeirão Preto registra 7.560 positivos e 225 óbitos; Bauru tem 2.315 confirmados e 45 vítimas fatais; Rio Preto soma 4.187 positivos e 124 mortos; Limeira tem 2.775 infectados e 95 pessoas que perderam a vida por conta do vírus. Isso, para ficar em poucos exemplos. Para onde se olhar no Estado de São Paulo, Franca tem significativamente menos casos do que outras cidades de porte semelhante.
Quando comparada com cidades maiores, o abismo é ainda mais evidente, mesmo considerada a proporção da população. No embate direto, Ribeirão tem aproximadamente duas vezes o tamanho de Franca e nada menos de 12 vezes mais infectados pelo coronavírus. Se a análise é feita considerado o número de mortes, o abismo é ainda maior, com 16 vezes mais vítimas lá do que aqui.
Apesar disso, alguma coisa deu muito errado por aqui. Quem acompanhou a reunião na Câmara Municipal na tarde da última sexta-feira, que contou com as principais lideranças envolvidas no combate ao coronavírus na cidade, pode comprovar, mesmo a contragosto, que todos os alertas feitos pelo portal GCN ao longo do tempo estavam corretos.
A cidade está à beira do colapso, sem leitos capazes de atender a demanda de pacientes que precisam de tratamento. Mais uma vez, é forçoso repetir. Não foi por falta de aviso. Desde o início da pandemia, o médico Homero Rosa, chefe da Vigilância Epidemiológica, alertava para a necessidade de conter a velocidade de propagação do vírus para permitir que a capacidade hospitalar da cidade desse conta do atendimento aos pacientes contaminados. Foram dezenas de entrevistas concedidas por ele, ao longo de meses, falando a mesma coisa. Vale o mesmo para Conrado Netto, secretário de Saúde, que repetiu a mesma ladainha em incontáveis oportunidades. Daniel Haber, presidente da Unimed, desde o primeiro instante adverte para a necessidade de medidas duras para conter a disseminação do vírus e para evitar o colapso. Os diretores da Santa Casa, especialmente o administrativo, Thiago Silva, fizeram vários pronunciamentos reforçando os entraves burocráticos que atrapalhavam o hospital de se preparar adequadamente para o desafio que se aproximava. Reclamaram das dificuldades com prefeitura, governo do Estado, governo federal. Só não ouviu quem não quis.
Pessoalmente, falei muito também. Já apresentei mais de 120 lives nas redes sociais, cada uma com cerca de 1h30 de duração, repetindo todos esses problemas e alertando para os riscos. Fiz o mesmo número de programas de rádio, no Hora da Verdade, com idêntica temática. Textos no portal GCN, foram centenas. Isso tudo, sem contar os discursos e pronunciamentos na tribuna da Câmara Municipal, muitas vezes na condição de voz isolada.
Nas, afinal, se os problemas eram conhecidos, se os alertas foram feitos, se as condições de Franca nos colocavam numa posição tão privilegiada, o que deu de tão errado para que a região fosse uma das únicas quatro do Estado a ser mantidas na fase vermelha?
Dois fatores, ambos interligados, explicam o que houve. O primeiro, um curioso efeito derivado do sucesso do combate ao coronavírus na cidade nos instantes iniciais. Como bem ensina o Dr. Homero Rosa, quanto mais eficiente são as medidas de enfrentamento à pandeia, menos as pessoas imaginam que precisassem delas. Assim, no começo, com a adesão ao isolamento, a postura firme do poder público e a pronta preparação do sistema de saúde, era como se não houvesse perigo por aqui. Poucos infectados, leitos para todos que precisavam, mortes isoladas. Parecia que tudo era um exagero, uma “guerra política” contra o presidente, um problema que não se agravaria.
Junte-se a isso o segundo fator: eleições. A população, cansada pela prolongada quarentena e castigada pela crise econômica que, infelizmente, é inevitável, independente da postura que se adote com relação ao vírus, passou a pressionar pela volta à “normalidade’. Diante da crise financeira cada vez maior e de um impacto da doença que não era visível, a maioria passou a exigir a retomada das atividades. Bares e restaurantes, academias de ginástica, motoristas de vans, profissionais de eventos, comerciantes, industriais, todos correram a pressionar pela retomada das atividades. É compreensível. O que não seria compreensível é admitir que os líderes cedessem à pressão de olho no voto que será depositado nas urnas em novembro. Com medo dos reflexos nas suas candidaturas, cederam ao apelo fácil do “abre tudo de qualquer jeito”.
Tempos de guerra, como os que enfrentamos, são aqueles que forjam grandes homens e mulheres. É momento da liderança se projetar, da lucidez se impor, e das ações efetivas tomarem o lugar do discurso vazio focado unicamente no resultado eleitoral. Há que se fazer o que é certo, independente da urna.
Mas ao invés de se debruçarem sobre planilhas, números, projeções, contas, de parar para ouvir o que a Santa Casa gritava, o que a Unimed alertava, o que os especialistas diziam, muitos políticos – especialmente o prefeito Gilson de Souza, mas não apenas ele – passaram a fazer coro ao “abre tudo” ao invés de cuidarem da lição de casa. Preferiram repetir o coro da multidão ao invés de ecoar os argumentos da razão. Foram semanas recheadas de reuniões para tratar da “reabertura”, o que é sempre uma discussão válida, desde que com critérios, e quase nenhuma energia devotada a contribuir para encontrar formas de aumentar a quantidade de leitos de UTI, o grande problema.
Além disso, houve erros imperdoáveis. Um deles, a forma incompreensível com que o Executivo decidiu continuar repassando uma quantia considerável para um hospital, o da Caridade, que ainda sequer pode funcionar plenamente como hospital. E onde foram instalados leitos de enfermaria que têm pouquíssima serventia. Tudo isso em detrimento de garantir que os recursos chegassem à Santa Casa, que precisava, além de dinheiro, também de tempo para se preparar para os tempos difíceis que chegariam – como, de fato, aconteceu. O que nem Freud explica só mesmo as urnas ajudam a entender.
Reza o ditado que não adianta chorar sobre o leite derramado. É verdade, mas também é preciso aprender com as lições para não deixar o leite derramar outra vez. O que impede a instalação dos leitos de UTI na Santa Casa de Franca não é a falta de dinheiro. A verba existe e já foi aprovada. Nada tem a ver com o dinheiro que o governo federal mandou para todos os Estados e municípios - no caso de Franca, são R$ 39 milhões –recomporem seus caixas, debilitados pela queda da arrecadação. Mesmo sem considerar este dinheiro, que, é bom reforçar, não se destina ao combate ao coronavírus, a prefeitura de Franca tem verba para socorrer a Santa Casa. A Câmara Municipal já até aprovou. O Estado também tem recursos reservados.
O problema, agora, é burocrático. Um leito de UTI precisa de equipamentos (e não apenas respirador), profissionais e também de “habilitação”, o processo pelo qual ele passa a “existir” para fins de atender quem precisa. No SUS, quem habilita um leito é a União, o governo federal. O ministério da Saúde alega que faltam documentos. A Santa Casa diz que já mandou tudo. E o Estado de São Paulo culpa o governo federal.
Se alguém conseguir resolver esta estupidez burocrática - e era para isso que o tempo do prefeito de Franca devia estar direcionado há semanas, não para tratar de reuniões dominicais sobre disputa eleitoral – restará o desafio da implantação dos leitos. Porque a Santa Casa já disse que, ainda que o dinheiro estivesse disponível nesta segunda-feira nas contas da instituição, não seria possível implantar mais do que 5 leitos a cada 15 dias – e isso, se o Estado ajudar com equipamentos. Se não ajudar, pode levar quatro meses, tempo médio que os fornecedores pedem hoje para entregar os equipamentos necessários ao funcionamento dos leitos de UTI. O tempo perdido não volta atrás. O que não foi feito quando deveria é impossível de ser resolvido num passe de mágica.
Ainda assim, mais do que nunca, é hora de correr. De parar de perder tempo com negacionismos infantis ou de focar energia em artimanhas eleitorais. É bom também reforçar a necessidade dos cuidados possíveis nesta quarentena que, cada vez mais, existe apenas no papel. Porque conter, um pouco, a velocidade de disseminação do vírus, neste instante, é absolutamente crucial. Tomar coragem e colocar a fiscalização na rua, amparada e com apoio, seria medida de bom senso que o prefeito deveria adotar já. Ontem, se fosse possível.
Enquanto a burocracia se arrasta e os políticos sonham com novembro, pessoas correm risco de morrer à espera de 20 novos leitos de UTI prometidos que, de fato, nem existem. E que seguirão assim, na melhor das hipóteses, até o início de setembro. Já desperdiçamos a chance de ter feito história. É melhor agir logo para não nos convertermos em exemplo de tudo que não devia ter sido feito. É um preço que se paga com vidas. Um preço que ninguém tem o direito de pagar.
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