"A coragem é a primeira das qualidades humanas, porque é a qualidade que garante as demais"
Winston Churchill, primeiro-ministro inglês
Não foi por falta de aviso. Nem houve ausência de transparência. Mesmo assim, o que não podia ter acontecido, simplesmente aconteceu. Franca amanhece neste domingo sem um único leito de UTI disponível no sistema SUS para tratar pacientes de covid-19. Quem tiver plano de saúde, ainda pode ser tratado na Unimed ou no Regional. Mas a imensa parcela que não tem como se valer da medicina privada, também não tem para onde correr se for infectada por covid-19 e precisar ser hospitalizada. Os 17 leitos da Santa Casa reservados para este fim, no Hospital do Coração, estão ocupados. 100%. Lotação máxima.
O comunicado sobre o colapso no sistema público de saúde destinado ao tratamento de pacientes com covid-19 foi distribuído na tarde deste sábado através de nota assinada pelo presidente da Fundação Santa Casa de Misericórdia de Franca, Tony Graciano. Em pouco mais de dez linhas, Graciano avisa que o sistema atingiu o seu limite e, para piorar, não dispõe de estrutura para que seja imediatamente ampliado.
Após descrever a quantidade de leitos ocupados no sistema SUS em Franca a cidades da região (na Santa Casa, dos 17 leitos, todos estão ocupados; em Ituverava, dos 10 leitos, 9 estão ocupados; em São Joaquim da Barra, há 5 leitos, todos ocupados), Graciano dá a pior notícia: “informamos que a Santa Casa de Franca não possui condições técnicas (equipamentos necessários) para receber novos pacientes”.
Tenho sido dura, violenta e covardemente atacado nas últimas semanas por uma turba que acredita que, se negar o coronavírus, o problema desparece. Sou xingado e criticado por defender respeito às orientações dos médicos, por acreditar que o isolamento social ajuda a retardar o avanço da doença, por me posicionar contra a abertura ampla, geral e irrestrita defendida por alguns.
Tenho alertado que não é possível permitir que o ódio camufle qual o verdadeiro risco do coronavírus, ensinado desde o princípio mas, lição que muitos parecem ter solenemente esquecido: o coronavírus não é uma doença especialmente letal. Ela atinge muitos, de forma rápida, mas apenas uma minoria precisa de atendimento hospitalar. Mas o problema é que, mesmo esta minoria, é numericamente significativa. É muita gente, e não há rede hospitalar dimensionada para dar conta desta demanda. Por isso, precisávamos manter o distanciamento – para evitar que o ritmo de contágio explodisse e, com ele, o aumento de necessidade de leitos hospitalares.
Passei a virar saco de pancada. Por defender o isolamento, sou tachado de “comunista”, “vagabundo”. Por acreditar que o momento não era favorável à abertura de templos e igrejas para celebração de missas e cultos, virei “ateu”, “anti-cristão”. Por dizer que o comportamento do presidente Jair Bolsonaro de incentivar as pessoas a desrespeitarem a quarentena era absurdo e nefasto, fui classificado como “petista”, “lulista” e afins.
Quase sempre, esse mesmo pessoal apresentava seus “argumentos”: Franca tinha muito poucos casos e apenas uma ínfima parcela da população estava contaminada. Ainda assim, quem foi infectado só tinha uma gripe. E nos poucos casos de gente que precisava ir para para o hospital, tínhamos leitos – e cloroquina – para resolver tudo.
A realidade não podia ser mais diferente. O ritmo de contágio acelerou significativamente, cloroquina não resolve nada nem aqui nem em nenhuma outra parte (dito pelo FDA americano, pela OMS e por dezenas de outras organizações sanitárias) e os leitos simplesmente não são suficientes.
Na última semana, discursei sobre isso na Câmara Municipal. Diante de colegas preocupados com a pressão de setores da sociedade que querem abrir tudo apesar das restrições impostas pelo Plano São Paulo, que classificou Franca e região na fase Vermelha, alertei sobre o perigo da falta de leitos. Disse, e está gravado, que nosso avanço estava limitado pela ausência de leitos. Muitos vereadores ficaram surpresos, pois consideravam que este não seria um problema grave e que a situação estaria relativamente tranquila do ponto de vista da capacidade hospitalar. Avisei que não estava. Deu no que deu.
Fatos são fatos, acredite você neles ou não. A realidade, mais cedo ou mais tarde, se impõe. Muitas vezes, de forma terrível. Neste primeiro domingo de julho, chegamos à triste constatação de que não há um único leito disponível para atendimento de casos graves de covid-19 no SUS.
Os próximos dias serão dramáticos. Pacientes de covid-19 ficam muito tempo nas UTIs, o que significa dizer que a lotação vai seguir assim. Pode haver uma alta ou outra, poderá haver o registro de novas mortes, o que é sempre terrível, mas é difícil acreditar que não vai haver também pacientes entrando no sistema.
Diferente do que alguns pensam, Implantar novos leitos de UTI não é simples. Não se trata de apenas conseguir respiradores. Esse tipo de unidade hospitalar depende de inúmeros outros equipamentos, além dos respiradores, e também de gente especializada, nem sempre disponível. Além disso, há que se conseguir dinheiro para tudo isso e ainda homologar os leitos junto ao governador do Estado. Nada é coisa que se resolve com alguns telefonemas e um par de dias de trabalho. É preciso muito mais esforço. E é preciso começar já.
Seria bom que o prefeito Gilson de Souza (DEM), desaparecido há algumas semanas, desse as caras e liderasse o processo pois foi esta a incumbência que 94 mil francanos deram a ele. É preciso superar as vaidades, acionar os deputados Graciela Ambrosio e Roberto Engler, e pedir ajuda. Não há tempo para firulas.
É preciso ser claro e explicar também à população que os leitos do Hospital da Caridade, para onde a prefeitura tem enviado significativa quantidade de dinheiro, não servem para receber casos graves de coronavírus, do tipo que precisa de UTI. E que eventuais parcerias com hospitais particulares só podem ser feitas se a Santa Casa deixar claro que não tem interesse em ampliar seus leitos. Como instituição filantrópica, ela tem preferência.
Por fim, antes que algum extremista de direita venha lembrar dos “milhões do Bolsonaro”, é importante ressaltar que este dinheiro (R$ 39 milhões, em 4 parcelas) não vem para o combate ao coronavírus. Ele é destinado à recomposição do caixa de municípios e estados, duramente afetados pela crise. É recurso para o pagamento do salário dos servidores, da manutenção dos próprios municipais, para o repasse das entidades, para a execução dos serviços públicos. Para o covid-19, até o último levantamento que tinha em mãos, o Estado havia repassado alguma coisa perto de R$ 5 milhões e o governo federal, cerca de R$ 2 milhões. Ajuda, mas não resolve. O buraco é bem mais embaixo.
A hora exige ação para lidar com o problema imediato, a falta de leitos, e também coragem para tomar posições que sejam necessárias para enfrentar uma situação que vai se arrastar por um bom tempo, já que a pandemia não vai desaparecer num piscar de olhos. E isso, quase nunca, significa dizer o que as pessoas gostariam de ouvir. Muito pelo contrário, invariavelmente leva à necessidade de falar coisas difíceis, de sustentar posições antipáticas – e, assim, fazer o que é certo e necessário. Acima de tudo, e sobretudo, para salvar vidas.
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