“Deus tem paciência com os maus, mas não para sempre”
Miguel de Cervantes, escritor espanhol
Foi no final da tarde de sexta-feira que o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, tornou pública sua decisão de levantar o sigilo sobre a gravação de uma reunião ministerial, comandada pelo presidente da República exatos 30 dias antes, e que faz parte do inquérito que apura se Bolsonaro promoveu – ou não – interferência indevida na Polícia Federal como parte de uma estratégia mais ampla para blindar, de forma ilegal, sua família de investigações criminais.
A tal reunião aconteceu numa quarta-feira, 22 de abril. O delegado-geral da Polícia Federal acabaria demitido no dia seguinte. Inconformado com a intromissão do presidente, que queria a todo custo ter acesso a inquéritos sigilosos, bem como mudar o comando da PF no Rio de Janeiro, Estado de origem de boa parte da família presidencial, o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, pediu demissão na manhã de sexta-feira, 24 de abril. Saiu atirando contra o presidente. Revelaria, dias depois, em depoimento à Polícia Federal, que suas acusações poderiam ser comprovadas com as imagens da reunião do Conselho de Ministros de 22 de abril.
O vídeo tornado público na tarde de sexta-feira de fato comprova que o presidente pressionou e interferiu diretamente na Polícia Federal. Isso é líquido e certo, apesar das diversas justificativas que o presidente já apresentou para tentar explicar suas palavras no encontro. Pouco importa o que ele diga. Qualquer pessoa com dois neurônios e um mínimo de isenção sabe que a pressão e interferência foram claras. Também é evidente que nada tem a ver com sua segurança pessoal, como tentou fazer o país crer.
Tanto Bolsonaro queria e pressionava pela mudança na Polícia Federal que, de fato, demitiu o diretor-geral e, com a saída de Moro na sequência, deu um jeito de trocar o superintende da PF no Rio de Janeiro. Fez o que havia dito que faria. Resta a dúvida se sua conduta foi criminosa, se algum ilícito foi cometido pelo presidente. A questão é dúbia. Pressionar é uma coisa, interferir criminosamente é outra. Há que se esperar o transcurso das investigações. Mas isso é o de menos.
Suponhamos, apenas como exercício retórico, que o presidente não tenha cometido nenhum delito ao pressionar Moro a fazer as mudanças que, com o ex-juiz fora do ministério, acabaria implementando. Ignoremos também o vocabulário tosco do presidente, que soltou 29 palavrões durante o encontro do Conselho de Ministros. Alguns, exemplos perfeitos da sofisticação típica do capitão reformado do Exército, como quando classificou o governador paulista e o prefeito de Manaus de “bostas”. Ou, de “estrume”, o governador fluminense.
Ainda assim, o que sobra do vídeo da reunião é aterrador. Mesmo sem os palavrões e ofensas, e ainda que deixadas de lado as acusações de Moro, o registro do tal encontro revela um líder perturbado e com evidentes sinais de síndrome persecutória; uma equipe confusa, agressiva e, em boa medida, também psicótica; nenhum planejamento coordenado para enfrentar a pandemia e, ainda pior, zero preocupação com as mortes que se contam hoje nas dezenas de milhares. Assistindo o vídeo, fica claro que há algumas semanas, quando o presidente, diante das mortes que se multiplicavam, soltou um indefensável “e daí?”, não se tratava de um ato falho. Ele e sua equipe realmente não estão nem aí para o vírus – ou suas vítimas. Como se percebe pelo vídeo, as verdadeiras preocupações de todos passam longe da pandemia.
Comecemos pelo ministro da Educação, ou da falta dela, Abraham Waintraub. Analfabeto funcional, como se percebe pelos constantes erros ortográficos que invariavelmente comete nas postagens que faz em redes sociais, Weintraub parece também sofrer de algum tipo de demência severa. Não apenas atacou colegas e a população inteira de Brasília, como atirou também contra os “povos indígenas”, opositores, o Congresso e, especialmente, os ministros do Supremo Tribunal Federal. “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”, sapecou.
Paulo Guedes, o lustrado ministro da Economia, mostra que continua o homem de foco que fez dele um bilionário. O problema é que seu foco não está na economia brasileira, nos milhões de desempregados, nos empresários que correm o risco de quebrar, na dificuldade de liberar os R$ 600 para os que mais precisam e muito menos numa fórmula qualquer para reativar a economia brasileira. Seu único e verdadeiro objetivo é o projeto eleitoral de Jair Bolsonaro. “A gente aceita, politicamente a gente aceita... Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente. Mas o presidente tem que pensar daqui a três anos. Não é daqui a um ano não”.
Damares Alves, a religiosa ministra da Família e dos Direitos Humanos que certa vez transformou a cor da roupa das crianças brasileiras em questão de Estado, revelou sua verdadeira faceta ao defender a prisão dos líderes que adotam medidas de isolamento social para tentar salvar vidas das populações que governam. “A pandemia vai passar, mas governadores e prefeitos responderão a processos e nós vamos pedir inclusive a prisão de governadores e prefeitos”, disse. Certamente há muitas almas no inferno com inveja da régua moral da pastora.
Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente, mostrou que é um homem atento às oportunidades. Quaisquer oportunidades, morais ou imorais, decentes ou indecentes. Sem nenhum pudor, sugeriu durante a reunião que deveriam todos aproveitar que a imprensa está focada na cobertura da Covid-19 para implementar mudanças regulatórias que poderiam chamar a atenção se não houvesse o vírus. “Enquanto estamos neste momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de Covid, é ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério do Meio Ambiente”. E as audiências públicas? As análises de eventuais prejuízos? O impacto das medidas? Dane-se. Na “operação Ricardo Salles”, é só botar tudo na conta da pandemia.
Mas nada, nem ninguém, supera Jair Bolsonaro. O mestre deixa seus discípulos no chinelo quando o quesito é show de horrores. Sem pudor, sem que houvesse qualquer contraponto ou questionamento – nem mesmo, registre-se, de Sérgio Moro, então ministro da Justiça, durante todo o encontro em obsequioso silêncio – o presidente da República vai muito além de defender o direito de portar armas pela população civil. Ele exorta as pessoas a se armarem para “reagir” – a bala, deduz-se – contra prefeitos e governadores que sigam o receituário do bom senso aplicado no mundo inteiro e que preconiza o isolamento social como forma de combater o coronavírus – inclusive, as diretrizes técnicas de seu próprio ministério da Saúde.
“Olha como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça (Sergio Moro) e ministro da Defesa (general Fernando Azevedo), que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui!", disse Bolsonaro. "Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta!", afirmou Bolsonaro, numa lógica que só pode fazer sentido na cabeça de alguém profundamente desequilibrado.
Queira ou não queira, Bolsonaro ainda terá que dar muitas explicações sobre sua real motivação para mover céus e terras para interferir na Polícia Federal. Nenhuma argumentação é necessária, no entanto, para justificar o que se passou numa triste manhã de 22 de abril no Palácio do Planalto, em Brasília. Está tudo gravado, por ordem do próprio presidente. Se alguém tem dúvida, é só assistir a íntegra do vídeo. E depois, se preparar para tempos muito difíceis que, certamente, teremos pela frente. A pandemia é gravíssima. Os mortos, reais. Mas o cenário que virá depois, pelo menos no Brasil, não é menos sombrio. Infelizmente.
Corrêa Neves Júnior, jornalista e vereador em Franca
email - junior@gcn.net.br
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