O depoimento de 'Judas'

Bolsonaro pode chamar Moro do que quiser. As milícias digitais controladas por seus filhos podem insuflar os bolsominions a compartilhar...

03/05/2020 | Tempo de leitura: 5 min

“Todo homem é o arquiteto de seu próprio destino”
Salústio, filósofo romano

 

Nove horas é tempo suficiente para alguém embarcar num avião em Cumbica e desembarcar no aeroporto internacional de Miami, nos Estados Unidos. Saindo de Franca, dá para fazer um bate-volta a São Paulo, com direito a parada rápida para comer, na volta, uns croquetes no rancho Empyreo, na altura de Leme. De ônibus, saindo da terra das Três Colinas, dá para chegar a Belo Horizonte.

Quase nove horas foi o tempo que Sérgio Moro - ex-juiz federal, ex-ministro da Justiça e agora neo-convertido em “Judas”, na definição do presidente Jair Bolsonaro - passou sábado prestando depoimento na sede da Polícia Federal de Curitiba, no Paraná. Falou diante de delegados da PF e de três procuradores da República no prédio que se tornou símbolo da Operação Lava Jato. Foi ali que Lula ficou preso. Foi ali também que, neste sábado, muito provavelmente Moro disse coisas capazes de abalar a República. Ninguém ainda sabe com detalhes exatamente o que, mas a extensão de tempo em que ele permaneceu no prédio permite deduzir que a vida de Bolsonaro, já bastante complicada neste instante, vai piorar sensivelmente.

Tudo tem acontecido muito rápido. Ao deixar o comando do ministério da Justiça, na sexta-feira da semana anterior, Moro havia feito uma acusação – grave - ao presidente da República. Como todo brasileiro já sabe, Moro afirmou que Bolsonaro decidira demitir o delegado geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, para substituí-lo por alguém que se dispusesse a “interagir” com ele. O objetivo era ter acesso privilegiado a relatórios e detalhes das operações em curso na Polícia. Escalou para a função Alexandre Ramagen, delegado com muitos atributos – nenhum deles tão relevante quanto ser amicíssimo de seus filhos. Queria também fazer substituições em algumas superintendências dos órgãos. Mais precisamente, em duas delas, Rio de Janeiro e Pernambuco, onde, não por coincidência, tramitam inquéritos e investigações que podem atingir em cheio, por vias diretas ou indiretas, exatamente os seus... filhos.

Moro havia dito que se o Valeixo fosse demitido sem razão e seu substituto indicado sem sua anuência, ele também se demitira. Foi o que aconteceu. Num pronunciamento na manhã de sexta-feira, Moro deu a explicação acima para sua saída. Justificou dizendo que a promessa feita pelo presidente, de que teria “carta branca” para gerir a pasta, tinha sido “violada”. Reclamou da tentativa de interferência. Fez considerações sobre suas realizações.

No final da tarde, enquanto Moro se despedia de sua equipe no ministério da Justiça, foi a hora de Bolsonaro falar – e atacar o demissionário ministro. Desde então, a troca de farpas e a lavação de roupa suja entre os dois, por meio de redes sociais – Twitter, Instagram, Lives – tem sido intensa, com direito até ao ex-ministro exibindo print de conversa de WhatsApp para comprovar que nunca condicionou sua permanência na função à indicação de seu nome para uma vaga no Supremo Tribunal Federal, como dito pelo entorno do presidente.

Se a saída de Mandetta havia sido definida por Bolsonaro como um divórcio consensual, sua separação de Moro é o típico litigioso, com direito a briga pelo espólio e muito chumbo trocado. Na manhã deste sábado, durante visita a Cristalina, em Goiás, Bolsonaro se referiu ao ex-homem forte do seu governo e ícone da onda que o levou ao poder como “Judas”. O termo é por demais óbvio e prescinde de qualquer explicação adicional.

Judas ou não, o fato é que nove horas é muito tempo. É tempo demais para qualquer um explicar apenas as circunstâncias que o levam a crer que determinada pessoa está metendo o bedelho onde não deve. Certamente, Moro não ficou apenas nos episódios já relatados por ele que tratam de algumas conversas com o presidente e sua pressão pela mudança na Polícia Federal.

Até a madrugada deste domingo, quando caminho para finalizar este artigo, apenas o site O Antagonista havia detalhado um pouco do que se passou durante tantas horas dentro do prédio da Polícia Federal. Sabe-se que foram feitos alguns intervalos, para café e descanso. Que pediram pizza para jantar. Que Moro deixou a superintendência da Polícia Federal por volta de 0h20, onze horas e cinco minutos depois de chegar ao local. E que, muito mais importante, além das conversas de WhatsApp que já havia tornadas públicas, entregou aos policiais novos diálogos trocados por aplicativos e e-mail, além de áudios gravados de conversas com emissários do presidente e outras figuras importantes do governo. Entregou também seu celular para que seja periciado. O conteúdo de todo esse conjunto de documentos comprovaria a imensa pressão – ilegal e imoral, se confirmada – que o presidente fez sobre seu subordinado para tentar interferir nas investigações em curso na Polícia Federal.

A queda de Collor começou com um modesto Fiat Elba. A de Dilma, com alterações orçamentárias que ficariam conhecidas como “pedaladas fiscais”. Perto disso, o arsenal de que dispõe Sérgio Moro é nitroglicerina pura. O ex-ministro passou mais de duas décadas de sua vida instruindo milhares de processos. Condenou muita gente. Levou dezenas para a cadeia. Sabe, melhor do que ninguém, não apenas o que é uma prova lícita e robusta, como também o que é uma evidência convincente e definitiva. A julgar pelo pouco que se sabe, o que ele entregou para a Polícia Federal é tudo isso junto.

Bolsonaro pode chamar Moro do que quiser. As milícias digitais controladas por seus filhos podem insuflar os bolsominions a compartilhar quantos memes forem capazes de produzir para tentar atingir o ex-ministro. Sua tropa de choque pode oferecer quantos cargos tiverem disponíveis para tentar segurar um eventual processo de impeachment no Congresso Nacional. Pouco importa.

A partir de agora, Bolsonaro terá que se defender. Para quem está acostumado a bater sem ser questionado, a ignorar a lógica elementar se ela atenta contra seus interesses, a construir narrativas que só fazem sentido para seus seguidores radicais, será um imenso desafio ter que se explicar. Por mais absurdo que possa parecer, obstáculo muito maior até mesmo do que o enfrentamento do coronavírus. Pelo menos para o Messias, essa é a nova realidade após o depoimento de seu Judas. Um “discípulo” que, muito diferente do original, não demonstra qualquer propensão ao suicídio – nem, ao arrependimento. Que venham os tuítes de domingo. O caldo, que estava fervendo há tempos no Palácio do Planalto, tem tudo para entornar de vez. 


Corrêa Neves Júnior, jornalista e vereador em Franca
email - junior@gcn.net.br

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