Uma guerra, muitas batalhas


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“Os espíritos vulgares não têm destino”
Platão, filósofo grego

 

No momento em que o ritmo de crescimento da pandemia do coronavírus acelera no país, matando mais de 200 brasileiros por dia e infectando outros 3 mil a cada 24 horas, vivemos um momento dramático. O foco de todos - que deveria estar concentrado única e exclusivamente no enfrentamento da doença, de suas consequências para o sistema de saúde e na inevitável crise econômica - acaba dividido com a necessidade de dispor tempo e energia, tão escassos, para enfrentar também a onda de descrença e negação disseminada pelos radicais seguidores do presidente da República.

Além dos problemas reais, têm-se que lidar com os delírios alimentados por essa corrente que ignora os fatos, dissemina o ódio e adota comportamentos que contribuem, e muito, para tornar a vitória sobre o coronavírus um desafio ainda maior. Rechaçar o isolamento social é o mais perigoso deles, mas não é o único. Qualquer um que defenda medidas de prudência e acredite na ciência vira alvo das sucursais do gabinete do ódio capitaneado, a partir de Brasília, por Carlos, o filho preferido do capitão. Os resultados são desastrosos, porque as teses apresentadas ora flertam com medicamentos que não funcionam, ora reduzem tudo a uma disputa eleitoral no Estado de São Paulo, como se todo o mundo não estivesse parado neste instante, ora insistem em bravatas que minimizam a gravidade da Covid-19. Para esses xiitas, como já disse e repeti várias vezes, é tudo “invenção”, “mentira”, uma “criação” da Globo, da Folha, do GCN.

Como não têm argumentos para apesentar a seus seguidores porque os campeonatos de futebol em todo o planeta estão suspensos, por qual razão não haverá Jogos Olímpicos neste ano, porque diabos cancelaram a NBA, a Fórmula 1, shows, aulas, palestras, simpósios, o funcionamento de bares, restaurantes, lojas e afins no mundo inteiro, recorrem ao mais rudimentar “apelo”: xingam. E como xingam.

Vociferam palavrões, destilam veneno, insuflam ataques. Nada mais sintomático da sua falta de razão. Poderiam apresentar, se fosse verdade o que apregoam, uma única evidência de que a vida segue normal no resto do mundo. Que nos Estados Unidos que idolatram não há quarentena. Que na Itália os restaurantes estão cheios de novo. Que na Inglaterra Boris Johnson provou que a doença é só uma “gripezinha” e retomou o comando do país, relaxando a quarentena e mostrando para todo mundo que não há motivo para medo. Como não conseguem, porque a realidade não é essa, recorrem às ofensas.

Infelizmente, a doença não espera que a consciência de todos esteja ativa para só então contaminar. Ela escreve sua história independente do que pensa a população de cada comunidade. Não escolhe quem contamina, nem quem vitima. Qualquer um que estiver a menos de 2 metros de distância e tiver contato com outro alguém que tenha o vírus, transforma-se imediatamente num alvo em potencial. Mais de 2 milhões foram infectados no mundo. E isso, considerados apenas aqueles testados – um número estimado em pelo menos dez vezes mais pode ter tido a doença e jamais vai saber. Quase 200 mil já morreram. Muitos outros tantos virão.

Aqui em Franca, o desafio segue imenso, agravado não apenas pelos radicais que rechaçam o isolamento social, mas também por dificuldades que mostram como é difícil combater esta doença. Alguns detalhes dos casos envolvendo a morte de Wesley Soares e a recuperação de Rosária Martins são emblemáticos para ilustrar o quanto ainda tem que ser feito para que se torne possível controlar a Covid 19.

No caso de Wesley, chama a atenção o fato de que, apesar de apresentar sintomas iniciais, passaram-se dias até que ele fizesse testes. Um deles, chegou a dar negativo, apenas três dias antes que sucumbisse para a doença. Mas o pior é que se passaram outros tantos dias até que começassem a testar os colegas que tiveram contato com ele. Quando começaram, identificaram pelo menos dois – um deles, uma advogada de Franca – também positivos para a doença. Essas pessoas, vítimas como ele, podem ter contaminado, involuntariamente, outros tantos. A pergunta, óbvia, é uma só: quando se tem um caso confirmado, por que imediatamente todas as pessoas que tiveram contato com o paciente não estão sendo isoladas até que sejam testadas e identificadas sua real condição?

É inacreditável constatar que o mesmo tenha acontecido com a família de Rosária Martins, a corajosa francana que teve alta nesta semana após permanecer mais de duas semanas internada numa UTI, entubada, lutando pela vida com a ajuda de médicos e enfermeiros que, como ela já disse, se tornaram sua “nova família”. Foram duas semanas entre a vida e a morte, com diagnóstico confirmado para a Covid 19. Mas neste período, seu marido, seus filhos, seus netos não foram testados. Na última sexta-feira, constatou-se que também seu marido tinha a doença. Por muitos dias, ele tinha seguido normalmente com sua vida, sem grandes restrições. Pode, sem querer, ter transmitido a doença para mais alguém. Difícil saber. Mas é óbvio que, se tivesse sido testado mais cedo, os riscos poderiam ser substancialmente reduzidos. Graças a Deus, ele está bem. Os técnicos avaliam que, muito provavelmente, ele desenvolveu a forma leve da doença. É um alívio, mas o que aconteceu com ele expõe o risco que todos corremos.

É preciso ser claro. Não há testes para, praticamente, ninguém. Nem mesmo para as pessoas que convivem diretamente com pacientes confirmados para Covid-19. Nestes casos, como a regra geral, há apenas uma “recomendação” de quarentena. Mas os testes só são aplicados se desenvolverem os sintomas da doença, como febre, coriza e tosse. Quem é assintomático, não é testado, o que não significa que não tenha coronavírus. É o protocolo do Ministério da Saúde, mas precisa ser revisto. Urgentemente.

Há problemas também com o fluxo de informações, ainda desordenado, o que piora a luta porque fomenta, ainda que sem intenção, o discurso de ódio dos negacionistas. Há hospitais mais abertos e profissionalizados, como a Unimed, que divulga detalhes do estado de saúde dos pacientes ali internados. Mas a situação não é regra. A Santa Casa pouco fala, e quando o faz, é sem detalhes. Ainda assim, melhor que o Regional, que nada fala. Não se sabe, neste instante, se alguém está internado lá, se quem esteve já recebeu alta, nem quantos atendimentos foram feitos no combate à doença.

A Vigilância Sanitária de Franca, comandada pelo valente Felipe Granzotti, tem que se desdobrar em múltiplas atividades. São os responsáveis por cuidar da vacinação, da fiscalização dos comércios e também dos relatórios consolidados da Covid 19. É muita coisa para pouca gente. É preciso reforçar as equipes, o quanto antes. É preciso refinar os boletins epidemiológicos diários, incluindo também os pacientes que estão sendo tratados para síndromes respiratórias. Não resolve, mas pelo menos é um indicativo. Como ninguém é testado, ajuda a dimensionar o tamanho que o problema pode, realmente, ter neste instante.

Há muitos desafios pela frente, no mundo inteiro. É óbvio que, mais dia, menos dia, a quarentena termina. Isso, nem de longe, implica dizer que a Covid 19 será um problema resolvido. Até que se tenha um remédio, ou que se desenvolva uma vacina, o que tanto num caso como no outro demanda tempo, o coronavírus seguirá assombrando o mundo, contaminando gente, matando pessoas. Espera-se, controlada a fase crítica, num volume menos terrível.

Até que se chegue a uma cura, só nos resta manter o discernimento e agir com prudência, indiferentes ao ódio de tantos, seguindo o que os médicos e especialistas recomendam. Quem defende a quarentena também quer retomar a normalidade. Apenas acredita que isso tem que ser feito quando a disseminação da Covid-19 estiver controlada e o sistema de saúde tiver condições de atender os doentes. Vivos, poderemos muita coisa – inclusive, criar soluções e alternativas para um mundo que não voltará a ser o que era. Mortos, seremos lembranças. E, se seguir em frente em meio a uma grave crise econômica é difícil, com o fantasma do desemprego e da falta de dinheiro assombrando todo mundo, a alternativa é muito pior. Porque de lembrança, ninguém vive.
 

Corrêa Neves Júnior, jornalista e vereador em Franca
email - junior@gcn.net.br

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