RELÓGIO DO SOL

A história e glória do Relógio do Sol


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A violenta ventania que cortava Franca e as densas nuvens que pairavam sob o céu da cidade no início da tarde de 27 de dezembro de 2017, uma quarta-feira, deixavam evidente que uma pancada de chuva, típica do verão nos trópicos, era quase certa. Antes que a noite caísse, o temporal desabaria. Foram 50 minutos de chuva forte.

Avenidas e ruas às margens dos córregos que serpenteiam pela cidade ficaram inundadas. A força das águas arrastou carros e motos. Houve gente que precisou ser resgatada de veículos que boiavam, à deriva, por vias subitamente transformadas em rios. Faltou energia elétrica em vários bairros. Casas foram destelhadas. Árvores caíram. Várias.

Uma delas, na praça Nossa Senhora da Conceição, teve um pesado galho arrancado por uma violenta rajada de vento. Antes que caísse ao chão, a madeira acertou em cheio o quadrante do gnômon, na parte superior do Relógio do Sol. O golpe, certeiro, degolou o relógio como se o monumento, forjado em mármore de Carrara, tivesse sido feito de papel. Suas peças foram guardadas à espera de uma complicada restauração, cujo resultado final deve finalmente ser apresentado pela prefeitura de Franca à população neste dia 6 de dezembro, após quase dois anos de espera.

Ícone da cidade há 132 anos, patrimônio histórico tombado e objeto de admiração de incontáveis cientistas e historiadores, o Relógio do Sol, além de ser uma espécie de “mascote”, é também motivo de orgulho para os francanos.

Gerações cresceram “aprendendo” que o Relógio do Sol instalado no Centro é uma peça quase única no mundo. Um outro, idêntico, existiria apenas em Annecy, cidade francesa conhecida como “Veneza dos Alpes” e terra natal do capuchinho Frei Germano, o idealizador e construtor do monumento de Franca e que também teria feito o “gêmeo” na Europa.

A versão, ensinada nas escolas, lembrada em reuniões de família, contada por orgulhosos francanos para amigos de outros cantos, foi registrada, com algumas variações, em incontáveis textos e artigos de jornais e revistas ao longo do tempo. Ficou tão sedimentada que hoje aparece, sintetizada, na Wikipedia (enciclopédia virtual) e também em documentos oficiais da própria prefeitura, como o site em que o poder público resgata a história da cidade.

É um erro. Conheço o relógio de Franca desde minha infância e estive em Annecy há alguns anos à procura de respostas. Antes de mim, o advogado e professor João Nascimento Franco também protagonizou jornada semelhante, que registrou num magistral artigo publicado no Comércio da Franca em 30 de junho de 1999.

Os relógios não são idênticos, não foram construídos pela mesma pessoa e o idealizador de um jamais viu “seu irmão”. O relógio do Sol de Franca é um, o de Annecy é outro. Ambos são verticais, o que os faz raros, mas não são exatamente parecidos entre si. O nosso é esguio, esbelto, longilíneo, com suas duas toneladas de mármore distribuídas numa estrutura de 3 metros de altura. O francês é baixinho, bojudo, cabeçudo, com uma estrela de sete pontas na parte superior. O de Franca foi feito por Frei Germano. O de Annecy por outro frade, também capuchinho, mas de nome Arsène. Ambos foram construídos num intervalo de uma década. O francês, inaugurado em 22 de julho de 1876 com o arrogante nome L’unique (único, em francês) grafado na base, é mais velho. O nosso foi entregue ao público em 11 de abril de 1887, numa grande festa, que marcou também, no mesmo dia, a inauguração da estação de trem da Mogiana e o início da operação das “marias-fumaças” por aqui.

A confusão que deu origem ao equívoco é compreensível, ainda mais se considerada a época em que a “história” sobre os relógios idênticos começou a ser contada, décadas atrás, com comunicações precárias e distâncias que levavam meses – ou anos – para serem vencidas. Se é fato que os relógios são distintos, também é fato que o exemplar francês fica na mesma cidade em que nasceu Frei Germano, o construtor do monumento francano, o que tornava plausível a versão das duas peças idênticas feitas pela mesma pessoa. Mas quando o relógio do sol de Annecy foi erguido, Germano estava fora da sua pátria há 25 anos, sem jamais ter regressado à sua terra natal.

É impossível ter certeza, mas o mais provável é que tanto Germano quanto Arsène, ambos frades, os dois franceses, tenham bebido na mesma fonte, os mestres da cidade de Annecy, considerados alguns dos mais sábios de seu tempo, e depois seus mentores durante os estudos religiosos. Certamente desenvolveram, ao longo da vida, interesses semelhantes em astronomia, física e matemática. E ergueram, cada qual num ponto do mundo, monumentos que mais de um século depois seguem encantando e provocando admiração.

No momento em que o Relógio de Franca é devolvido, restaurado, à população cujos ancestrais financiaram sua construção, vale a pena resgatar a incrível jornada de Frei Germano desde quando ainda era conhecido como Claude Charles Marion, o nome com o qual foi batizado em 1822, até sua morte num navio, em 1890, na sua tentativa de voltar para sua terra natal. Germano nasceu no ano em que Pedro I decretava a independência do Brasil e morreu seis meses depois da República ser proclamada por Deodoro da Fonseca. Nestes 67 anos de vida, o menino pobre de Annecy converteu-se num homem culto, inteligente, célebre mas humide, que até o fim da vida foi respeitadíssimo pela comunidade científica. Um gênio que fez de Franca seu lar por quase uma década. E que aqui deixou muitos legados. Um deles o monumento que, 132 anos depois, segue como grande símbolo da cidade. 

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