A bisa


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“Os brinquedos mais simples, que até bebês sabem operar, chamam-se avós”
Sam Levenson, humorista americano

 

Nunca conheci meus bisavôs. Quando nasci, meu pai já tinha quase 50 anos. Seu pai havia morrido quando ele era ainda adolescente, nos anos 40, em Itirapuã. Sua mãe, minha avó, faleceu quando eu ainda era bebê e não tenho qualquer registro dela na memória. Se não convivi com meus avós paternos, o que dizer dos bisavôs? São, para mim, apenas registros numa árvore genealógica e personagens de alguma história compartilhada nos Natais. Vale a mesma lógica para a linhagem materna. Quando mamãe nasceu, minha avó Dina e meu avó Osmar já tinham ultrapassado os 40 anos. Quando eu vim ao mundo, vinte e tantos anos depois, meus bisavôs por parte de mãe já tinham partido. Sei um pouco do bisnonno Afonso, imigrante italiano cuja origem persegui até Loiano, uma minúscula cidadezinha perto de Bolonha – e muito pouco além. Tenho enorme respeito pela história dos meus antepassados, mas nenhuma lembrança deles. Infelizmente.

Mas a vida, sempre, surpreende. E foi assim que, há alguns anos, a amizade do João com Beatriz, aluna da mesma escola, levou a aproximação de nossas famílias. Foi uma sintonia imediata, uma afinidade instantânea, um bem-querer desses que a gente costuma reservar para aqueles que são “sangue do nosso sangue” - ainda que, eventualmente, não sejam. Primeiro, com os pais da Beatriz e da Lavínia, o Alexandre e a Teresinha. Depois, com seus tios, Fabrício e Viviane. Vieram então os avós, Pedro e Isilda. E, grande privilégio, também a ‘bisa”, nome carinhoso que as crianças reservavam para a dona Maria Gobbi e foi, imediatamente, replicado por nós. Bisa era uma mulher fantástica que, com mais de 80 anos, se mantinha plena, lúcida, ativa.

Nascida na roça nos anos 30 do século passado, a bisa cresceu num mundo sem TV, sem telefone por perto, com rádio a válvula e jornal em preto e branco. Carro, naqueles tempos, mais fácil topar com um de boi do que com algum movido a motor. Água encanada quase ninguém tinha. Eletricidade era para poucos. E o esgoto, conceito simplesmente inexistente. Foram tempos difíceis, mas propícios para a forja de grandes pessoas. A bisa foi, sem dúvida, uma delas.

Anfitriã que carregava no sangue o DNA italiano, não existia para ela mesa que não estivesse coberta por gostosuras. Fazia questão de que todo mundo comesse – bem, e muito. Queijos, salames, patês, churrasco. E o pão, caseiro, que amassou com as próprias mãos enquanto pode. E, quando não mais podia, ficava do lado da filha Isilda, que assumia as funções, “pajeando” a massa como se fosse alguma criança que pudesse a qualquer tempo aprontar uma travessura e “desandar”. Encantada com o João e seu insaciável apetite pelos “pães da Bisa”, não raro nos presenteava com alguma fornada tirada no meio da semana, num dia qualquer, como se fazer aquilo fosse a coisa mais simples do mundo. Não era. Mas a Bisa fazia parecer ser.

Desbravadora, Bisa foi conosco para hotéis-fazenda, onde sempre reclamava da pouca disposição do grupo para acompanhar a apresentação dos músicos. A gente se cansava e queria dormir; a bisa, não. Queria ver o show. De chapéu, deslizava sobre a areia do coqueiral de Carneiros rumo a praia pernambucana onde se divertia bebericando alguma coisa – de preferência, cerveja preta. Para os Estados Unidos, só não foi porque o genro, a quem considerava, com razão, um filho, achou arriscado demais uma jornada de 20 dias. Tenho certeza de que, se tivesse ido, Mickey e Minnie nunca mais seriam os mesmos.

Dona de uma espiritualidade fortíssima, era “benzedeira” iluminada. Nos momentos mais agudos, quando a fé e a esperança são os que nos resta, contar com as bênçãos da bisa fazia toda a diferença. Tenho a mais absoluta convicção de que sua intersecção foi fundamental num dos dias mais angustiantes que passei, há alguns meses, e cujo desfecho foi o melhor possível. Graças a Deus, sem dúvida – e por meio da bisa, também sem qualquer dúvida.

Vou guardar para sempre comigo as muitas tardes que passamos juntos na casa do “seo” Pedro e da dona Isilda, lar também da bisa, em intermináveis conversas pontuadas por muitas risadas. Generosa e sempre disposta, a bisa partilhava suas histórias om todo mundo. Mamãe era uma de suas grandes ouvintes. Minha mulher também. A prosa só era interrompida quando ela, com o amor que as grandes mulheres carregam dentro de si, fazia interrupções para tirar uma dúvida prosaica: “Milena, o João comeu?”. “Sônia, você pegou suco para o João?”. Bisa era assim. Com o João, conosco, com todo mundo.

Bisa partiu na tarde da última terça-feira. O corpo, já cansado, não resistiu mais à internação que somava 21 dias. Tinha 88 anos. Seu velório reuniu muita gente, todos emocionados e já sentindo o peso da saudade. Apesar de triste, foi também lindo. Num dos momentos mais tocantes, seu irmão Antônio, onze anos mais novo e por quem tinha verdadeiro xodó, chegou numa cadeira de rodas para a despedida. Ao lado do caixão onde o corpo descansava, fez o impossível para se levantar. As lágrimas sentidas que escorriam do seu rosto deixavam claro que a mulher que partia era mais que especial. Bisa era única.

Ninguém sabe o que nos espera depois da morte, de que forma Deus nos acolhe, o que vem depois do último suspiro. Se os vikings estiverem certos, o paraíso é Valhalla. Caso os muçulmanos estejam com a razão, o descanso final é em Jannah, cercado por lindos jardins. Se os hinduístas anteciparam com precisão, o melhor lugar fica ao lado de Vishnu, cuja morada é guardada por Airavata. Se Buda foi quem acertou na descrição, os bons seguem para Samsara. Se a tradição cristã for a mais correta, a última parada é o céu, sobre as nuvens, ao lado de Deus, de Jesus, de Nossa Senhora e dos espíritos elevados. Um dia, todos nós vamos descobrwir a resposta certa. Qualquer que seja ela, aposto que a bisa estará lá, no melhor lugar. Zelando – e esperando – por todos nós. Um beijo enorme, bisa. E muito obrigado. Por tudo.

 

Corrêa Neves Júnior, publisher do Comércio e vereador.
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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