Torço para que o auditório da Casa da Cultura esteja lotado nesta segunda-feira, quando o francano Baltazar Gonçalves lançará seu livro de título emblemático, sugestivo: Tecido na Papelaria. Assim os presentes poderão conhecer e aplaudir como se deve o autor de obra consistente, profunda, embebida numa poética renovada como a brisa da primavera recém-chegada.
A mim surpreendeu o fato de ser estreia: o primeiro livro não costuma vir à luz com tão fino acabamento, exibindo construção precisa de quem sabe por intuição que áreas de respiro são imprescindíveis a palavras densamente carregadas de sentido.
Exibindo os fios de um léxico metafórico, tanto a urdidura dos poemas como a trama da prosa compõem texturas que traduzem emoções captadas no tear da alma; apreendidas naquele instante em que ainda não ganharam a folha em branco, papelaria prístina onde os poetas semeiam palavras na arquitetura do texto: “Hoje sopro ao nada o que ontem foi inspiração e quando o silêncio improvável volta para a gaveta, remo e ancoro no charco em busca das impressões da sua língua na minha- mucosas da língua, nosso degredo”. Língua, linguagem, idioma. A metalinguagem é uma chave importante com a qual abrir os textos. Ela “fica na ponta de cada agulha ao longo da obra”, já avisou o poeta.
Mas existem outras chaves, talvez mais explícitas. Uma dela, o vocábulo “tecido” (e seus cognatos), que pode se referir ao particípio passado do verbo tecer ou pode ser forma substantiva. Sonhemos nos poemas e na prosa.
Do ponto de vista da biologia, um tecido é o conjunto de células que nos humanos se classificam em epiteliais, conjuntivas, musculares e nervosas. A histologia, que analisa os tecidos em profundidade, usa como principais ferramentas o bisturi e o microscópio, que permitem adentrá-los em cortes finíssimos de material. Pois assim imaginei o trabalho cirúrgico de Baltazar Gonçalves- do exterior para o interior, da pele aos nervos, fazendo uso de um bisturi etéreo que auxilia seu olhar no processo de dissecação e, depois, na sua sutura, destecendo para depois tecer. A cada camada, da pele aos nervos, o caminho sofrido é compensado pelas revelações lapidadas com o cinzel do estilo: “O dia não pede pressa, pede ciência./ Abrevia.”
Mensagens densas, apenas sugeridas, por vezes expressas com um mínimo de vocábulos, abrem-se como um leque aos olhos do leitor atento e sensível às flutuações de sentido. Outras, mais transparentes, nem por isso menos profundas, fundam uma prosa cuja grande maestria está em mostrar a realidade com a vibração de quem nela vê sentidos inusitados ou enigmáticos.
Na orelha, a ficcionista Vanessa Maranha escreve a respeito que “o que brilha e irradia mesmo é a linguagem, experimental, filigranada, trazendo aliterações engenhosas, neologismos, sintagmas, sofisticações várias, bem como os prosoemas, ou seja, poesias com versos dispostos de forma linear, horizontal, numa estrutura semelhante à da prosa.” É sem dúvida uma das riquezas do livro.
Nos versos e na prosa poética as palavras sugerem a complexidade dos sentimentos, buscam sentido para momentos prosaicos, perseguem a passagem do tempo e suas transformações, sinalizam construção e desconstrução de afetos. Elas sobretudo falam de si mesmas, num nível de abstração e beleza que de repente desabrocha versos como os de O pintor, o costureiro e a dama, escolhido pelo autor para a contracapa: “Logo o quadro estará pronto, grande painel decorativo; deve ocupar o centro da sala / se bem vestida a Dama inculta e bela /ainda estiver nua.”
Vamos ler poesia, minha gente. Ela nos exila por instantes das realidades duras e ásperas que nos cercam. Ela nos humaniza.
Fale com o GCN/Sampi!
Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.