GAZETILHA

A 'queima' dos livros

Não tacaram fogo, literalmente, mas o intuito era o mesmo: impedir que as obras fossem livremente lidas.

08/09/2019 | Tempo de leitura: 3 min

“Não há livros morais nem imorais. O que há são livros bem escritos ou mal escritos”
Oscar Wilde, escritor inglês

 

Na mesma semana, num intervalo de um par de dias, o governador do Estado de São Paulo, João Doria (PSDB), e o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), protagonizaram, cada qual no seu palco, espetáculos igualmente deprimentes, que revelam um profundo viés de arbitrariedade e intolerância: ambos mandaram apreender obras voltadas para o público infanto-juvenil.

Não tacaram fogo, literalmente, mas o intuito era o mesmo: impedir que as obras fossem livremente lidas. O pretexto era “proteger” jovens da “apologia da ideologia de gênero”, jargão usado pelos conservadores de hoje para se opor à discussão da sexualidade além dos limites de “homem” e “mulher”.

É pior que tentar tapar o sol com a peneira. Gays existem desde sempre, e isso é simplesmente uma questão de foro íntimo. Nunca encontrei ninguém que “aprendeu” a ser homossexual lendo um livro. Ou que subitamente desenvolveu desejo por uma pessoa do mesmo sexo depois de estudar numa apostila. Não poderia haver ignorância maior dos dois políticos. Nem desculpa mais esfarrapada.

O primeiro a flertar com a censura foi o governador paulista, que na última terça-feira mandou recolher de todas as escolas públicas paulistas uma apostila com material didático de oito diferentes disciplinas (artes, ciências naturais, educação física, geografia, história, inglês, matemática e português). Utilizada no oitavo ano, por jovens com idades entre 13 e 14 anos, a apostila tem 144 páginas. “Fomos alertados de um erro inaceitável no material escolar dos alunos do 8º ano da rede estadual (...) Não concordamos e nem aceitamos apologia à ideologia de gênero”, esbravejou.

O “erro inaceitável” apontado por Doria reduz-se ao conteúdo de apenas três paginas que tratam de questões de sexualidade. Ali, explica-se, além de conceitos sobre doenças sexualmente transmissíveis, também a diferença entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Tudo com linguagem apropriada e sem quaisquer excessos.

Era um importante material, que deveria ser discutido em sala de aula porque informa, esclarece e desmistifica, sem fazer campanha pró nem contra a escolha do indivíduo. Não será mais usado. Inspetores de alunos trataram de entrar nas salas de aulas, recolher as apostilas e jogar tudo em sacos pretos – de lixo. Por ordem direta do governador.

Pior ainda fez o prefeito carioca, Crivella, que incomodado com Vingadores, a cruzada das crianças, gibi da Marvel à venda na Bienal do Livro do Rio, mandou na noite de quinta-feira que fiscais recolhessem todos os exemplares. “Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças”, vociferou o sempre encrencado prefeito. Mas, afinal de contas, que conteúdo tão “impróprio” era esse? Nada de nus, nada de sexo, nada demais... Apenas um beijo entre dois garotos vingadores quando adolescentes, numa única página do gibi.

O tiro de Crivella não poderia ter saído mais pela culatra. A Bienal simplesmente recusou-se a cumprir a “ordem” do prefeito. Todos os exemplares disponíveis foram vendidos em menos de uma hora na manhã de sexta. E, para completar, o blogueiro Felipe Neto, como forma de protesto, comprou 10 mil exemplares do gibi para distribuir de graça a quem quiser.

Não deve faltar o que fazer para Doria e Crivella. Mas, em último caso, se o ócio for inevitável, bem que poderiam tentar pentear macaco. Qualquer coisa é melhor – e menos estúpido - do que tirar livros de circulação.

 

Corrêa Neves Júnior, publisher do Comércio e vereador.
email - junior@gcn.net.br
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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