O jornal

Tomar a decisão de reduzir a circulação da versão impressa do jornal foi difícil.

02/12/2018 | Tempo de leitura: 5 min

“A nossa maior glória não reside no fato de nunca cairmos,
mas sim em levantarmo-nos sempre depois de cada queda”

Oliver Goldsmith, escritor irlandês 

 

 

Nasci dentro do jornal. Fazia poucos meses que papai tinha comprado o Comércio do jornalista e professor Alfredo Costa quando vim ao mundo. Eram tempos muito difíceis. As dívidas, enormes. Meu pai estava sozinho, com minha mãe, o jornal e meia dúzia de funcionários. Não era exatamente um cenário promissor. Foi neste contexto que, dois anos depois, eu nasci, num hoje distante fevereiro de 1974.

Minhas primeiras memórias misturam as brincadeiras da infância na rua Manacá, na Vila Flores, com as atividades na escola Dinâmica Espiral, então no Centro, e minhas idas ao jornal, que funcionava na Ouvidor Freire. O lugar tinha um quê de mistério — era meio lúgubre, tinha papel para todo lado, mas o ritmo intenso de trabalho, as máquinas IBM Composer na qual os jornalistas produziam seus textos, a delicada sinfonia de montar as páginas nas grandes folhas quadriculadas do past-up, como um enorme quebra-cabeças, e a barulhenta rotativa Goss Comunnity, que produzia jornais numa velocidade considerável, me fascinavam.

O jornal sempre foi onipresente em minha vida. Se alguém perguntava onde estava meu pai, a resposta invariável era uma só: “no jornal”. Se minha mãe se sentava na mesa redonda de casa para escrever, ninguém tinha dúvidas do que sairia dali: colunas para o jornal. Se a campainha tocava no meio da tarde, era alguém do jornal que tinha vindo buscar os textos. Se havia um barulho de manhã do lado de fora, era o jornal que acabava de ser entregue. Se a noite chegava e meu pai não, era porque ele estava no jornal resolvendo problemas de alguma matéria. E se o telefone tocava de madrugada, certamente era porque alguma máquina havia quebrado. Nada disso era um problema. Simplesmente, fazia parte de nossas vidas.

Adulto, entraria de vez no jornal. Para ficar. Fiz de tudo, e o jornal, sempre ele, continuava parte integrante da minha vida. Vivíamos do que o jornal nos provinha, mas havia uma reciprocidade grande: dedicávamos nossas vidas ao jornal. Acostumei a dormir na redação. A esperar o jornal ser impresso antes de ir para casa. A me orgulhar de notícias que impactariam a cidade. A comemorar furos de reportagem. Era o jornal. Éramos nós.

Estava na casa dos 30 quando meu pai adoeceu, se afastou, morreu. No caixão onde foi cremado, acompanhavam seu corpo uma bandeira da Francana, seu time do coração, e um exemplar do Comércio do dia, colocado sob seus braços, do jeito que ele sempre carregava o jornal. Cumpria-se assim sua vontade algumas vezes revelada.

Fui então assumir funções que nunca imaginei ocupar. Sempre fui um homem de redação, um jornalista. Tive que aprender a lidar com números, projeções, contas, dinheiro, enquanto minha mãe, junto com uma equipe competente e dedicada, ajudava a fazer um jornal cada vez melhor. Durante uma década, foi uma experiência muito prazerosa. Crescemos num ritmo intenso, a ponto de reunir 350 funcionários. Fizemos muita coisa importante. Mudamos de prédio, compramos novas máquinas, lançamos cadernos, suplementos, eventos. Mas, a história tem seus ciclos. E o ciclo do jornal, da forma como ele existia há mais de um século, estava prestes a sofrer drásticas transformações.

Desde então, temos procurado nos ajustar da melhor forma possível. Mas como o cachorro que persegue o próprio rabo, a disrupção do mercado de mídia e a grave crise econômica que se abate sobre o país desde o final do primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT) fizeram com que nenhum corte de despesa, nenhum racionamento ou medida de contenção, se mostrassem suficientes para nos livrar de um incômodo aperto financeiro.

Esta realidade não é exclusividade nossa. Milhares de jornais, mundo afora, sucumbiram. Centenas de milhares de empregos de jornalistas foram cortados. Fábricas de papel, fechadas. O mundo transformou-se em digital. O papel, virou nicho. Persiste e resiste, mas para um público específico. Ajustar-se é imperativo. A alternativa é morrer.

Foi para manter a tradição de mais de um século de história que, após muitas análises e uma dose cavalar de sofrimento, decidimos interromper a circulação do jornal impresso nos dias úteis. Sei que há quem pense diferente, mas os números do mercado, no Brasil e no mundo, mostram que um jornal impresso, diário, tem cada vez mais dificuldades para se manter.

Tomar a decisão de reduzir a circulação da versão impressa do jornal foi difícil. Implementá-la, muito mais. Parte significativa de mim morreu com a decisão. Não apenas pelo que significa para os leitores, os anunciantes, para a comunidade, o que por si só seria emocionalmente desgastante. Mas o pior, mesmo, foi ter que fazer demissões de gente querida. Profissionais que estão conosco há anos — alguns deles, décadas. Gente dedicada, comprometida, talentosa, que em boa medida tem relações tão profundas quanto as minhas com o jornal. E que não saem por nenhuma outra razão que não a imperativa necessidade de reduzir o quadro de funcionários para economizar. A partir de amanhã, eles inauguram outro capítulo em suas vidas.

Sou grato, profundamente, aos que partem. Me emocionei muito com as despedidas, com as palavras de carinho, com as lágrimas derramadas. Fizemos muitas coisas boas. Nos divertimos, nos irritamos, nos orgulhamos. Eles são tão parte do jornal quanto nós, que ficamos. Espero que a vida permita que, num ponto qualquer à frente, possamos retomar uma trajetória conjunta.

Nesta terça-feira, desde que nasci, pela primeira vez não haverá uma edição impressa do Comércio na casa dos assinantes, nas bancas, nos pontos de venda. É ruim, mas a alternativa seria pior. Concentrado nos finais de semana, o Comércio segue em frente.

Agora é hora de trabalhar — ainda mais — duro. Para recompensar a confiança do leitor, cumprir nossa missão de informar e, também, para honrar o trabalho de tanta gente que fez deste jornal um dos mais importantes e respeitados do Brasil. Tanto os que partiram, quanto os que ficaram. O desafio é grande, mas não nos intimida. Sei, no fundo, que vamos vencer. O jornal, e seus leitores, merecem.

 

Corrêa Neves Júnior, publisher do Comércio e vereador.
email - jrneves@comerciodafranca.com.br
 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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