Encontrei há algum tempo ex-aluno que trabalhou na área de alimentação na Capital e me contou que sua função era colocar espigas de milho numa bandeja de isopor onde deveriam caber apenas quatro bem ajustadas, para serem então embaladas em papel-filme pela máquina. Perguntei-lhe brincando se todas as espigas disponíveis eram do mesmo tamanho e ele me respondeu sério que não. Grande parte delas era descartada, por serem maiores ou menores que a bandeja. Ou por terem grãos irregulares.
Foi a partir de então que passei a observar com mais atenção e outro olhar frutas, legumes, verduras nos supermercados; e a ver, com frequência, funcionários escalados para a tarefa de retirar das bancas e gôndolas o que apenas ameaçava perder o viço nas próximas horas. Nem ousei perguntar então sobre o que me pareceu impróprio. Não o fiz porque sei a resposta. Diriam que o freguês rejeita o que não lhe parece bonito.
É verdade. Nós, consumidores, eu me incluo, nos deixamos guiar por um padrão estético imposto de forma avassaladora pelo varejo. Não compramos berinjelas com cicatrizes, cenouras bifurcadas, abacates marcados por manchas de ferrugem. Desprezamos beterrabas esfoladas, pimentões tortos, caquis que perderam a perfeita esfericidade. Tomates que lembram uma trouxinha cheia de pregas? Nem pensar. Maçãs que devem ter levado chuva de granizo enquanto cresciam? De jeito nenhum! Goiabas de casca fina e cor irregular? Nunca. E no entanto, à exceção da aparência, todas mantêm seu sabor natural, as substâncias nutritivas que as distinguem, a capacidade de nutrir, que é afinal o que deveria determinar a escolha. Mas na sociedade de consumo a aparência importa, agrega valor.
As frutas são apenas a ponta do iceberg. O padrão da perfeição virou ditadura que se estende à moda, ao cabelo, ao rosto, a brinquedos, a objetos de desejo que a publicidade apresenta como necessidades que na verdade inexistem, são criadas apenas para alimentar o consumo. Mas no caso das frutas descartadas apenas por seu defeito externo, o caso ganha foro de insensatez, senão de cruel indiferença. Segundo a FAO, órgão da ONU que cuida de assuntos ligados à alimentação e à fome no mundo, frutas, legumes e verduras excluídos por conta de seu desenho que não se encaixa nos moldes tidos como belos, representam grande parte do bilhão e meio de toneladas desperdiçadas no mundo e 1/3 de tudo que é produzido no planeta. Quando se relembra que há milhões de famintos, incluindo crianças, em diferentes regiões da Terra, os números do desperdício levam qualquer indivíduo com mínimo de sensibilidade a refletir. Não é porque estamos alimentados que temos o direito de esquecer os que clamam por comida.
Os dados perturbadores, divulgados no ano passado, parecem ter mobilizado o espírito de muitas pessoas. Algumas iniciativas têm surgido e ganhado a mídia por seu caráter humanitário e inovador. Uma delas chama particularmente minha atenção. É a mostrada por grupos que comercializam a preços mais baixos frutos imperfeitos. Nos países escandinavos, em Portugal, nos Estados Unidos, e agora no Brasil, esses grupos se organizam e crescem, numa atividade que tem como motivação tanto o lucro como o uso consciente dos alimentos. Em São Paulo, criou-se uma empresa chamada Fruta Imperfeita. Ela começou pequenina mas cresceu muito nos últimos meses, vendendo a preços bem mais baixos que os de mercado produtos com algum defeito no seu design ou na sua casca. O sucesso dos jovens empreendedores criativos me deixou admirada e esperançosa . Quando motivadas, as pessoas podem mudar seu comportamento e contribuir para a melhoria do mundo. A Fruta Imperfeita é semente pequenina, plantada por idealistas que a estão vendo germinar em condições de fertilizar novas consciências em termos de nutrição, estética e urgência no combate ao desperdício, este também um quesito no amplo conceito de civilidade, no qual está implícita a ética.
E. Para concluir. Se nos pautarmos apenas pela aparência, corremos o risco de alienar da mesa e da vida muita coisa que poderia ser essencial. A nós. Aos outros.
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