Tormentos

Todo mundo tem problemas. Ninguém passa por este mundo sem enfrentar suas agruras.

10/06/2018 | Tempo de leitura: 5 min

“Sofrer e chorar é viver”
Fyodor Dostoyevsky, escritor russo

 

Todo mundo tem problemas. Pode se tratar do agitado morador de uma grande cidade cosmopolita ou do discreto habitante de uma pequena comunidade rural; pode ser homem, mulher ou gay; criança, jovem ou adulto; rico ou pobre; branco, negro, asiático ou indígena; religioso ou ateu. Pouco importa. Alguns são maiores, outros tantos menores, mas o fato é que ninguém passa por este mundo sem enfrentar suas agruras.

Os suicídios de duas celebridades nesta última semana, registrados num intervalo de apenas três dias, lançam luz sobre como a depressão tem se tornado um desafio agudo, global e de difícil solução. E também de como é falsa a premissa de que se alguém tem dinheiro, amores e saúde, logo não tem problema algum. Nem mesmo, o direito de ter. Afinal, do que poderia reclamar alguém com uma conta bancária recheada, um parceiro para chamar de seu, filhos saudáveis e reconhecimento profissional? Só de tédio pela ausência de dificuldades? Estão aí os fatos para mostrar que a vida não poderia ser mais diferente.

A primeira foi a estilista Kate Spade, morta na manhã de terça-feira, 5 de junho. Nascida em 1962, conquistou uma carreira bem sucedida de forma relativamente rápida. Jornalista, destacou-se no final dos anos 80, ainda antes de completar 30 anos, como editora de acessórios da revista especializada em moda Mademoiselle, publicada em Nova York.

No início dos anos 90, deixou o emprego na revista e, pouco depois, junto com o namorado com quem dividia apartamento, fundou uma pequena grife especializada em bolsas femininas. Coloridas, grandes, práticas, as bolsas Kate Spade se tornaram uma espécie de símbolo da Nova York dos anos 90. Viriam depois sapatos, joias, óculos de sol, roupas de cama, tudo com seu nome. Antes de completar 15 anos de existência, Kate vendeu sua empresa. A parte que coube a ela e ao marido na transação foi estimada em cerca de R$ 250 milhões.

Aos 40 anos, Kate era reconhecida, respeitada, famosa. Tinha marido, filha e uma conta bancária grande o bastante para afastá-la dos problemas do dia a dia. Só não era suficiente para livrá-la de suas próprias angústias. Como descobriu-se agora, Kate Spade sofria de depressão e ansiedade. Nunca deixou de trabalhar, escreveu livros, fundou outra grife, mas também parece óbvio que jamais encontrou paz de espirito. Na manhã da última terça-feira, aos 55 anos, enforcou-se no seu apartamento da Park Avenue. Deixou apenas um bilhete, endereçado à filha, hoje com 13 anos. Nada mais.

O segundo a pôr fim à própria vida foi o chef de cozinha, escritor e apresentador de TV Anthony Bourdain. Uma espécie de bad boy das panelas, ficou famoso, assim como Kate, em Nova York. Durante uma década, comandou a disputadíssima Brasserie Les Halles. Em 1999, ganhou notoriedade ao escrever um artigo para a revista The New Yorker. Com o sugestivo título de Não coma antes de ler, o artigo revelava o que acontecia nos bastidores das grandes cozinhas da cidade, com direito a pressão, cobranças, alguma sujeira, sexo e muitas drogas entre as panelas.

Logo depois, ele escreveria um livro, Kitchen Confidential, uma espécie de extensão daquele artigo, misturando também sua própria biografia. Foi outro sucesso, o que acabou levando-o para uma nova carreira, desta vez, na TV. Apresentou vários programas. O mais conhecido por aqui, chamado Sem Reservas, mostra Bourdain viajando mundo afora atrás de restaurantes despojados, comidas diferentes, experiências singulares. Era muito divertido, especialmente porque Bourdain não tinha pudor em experimentar qualquer coisa — nem de dizer o que pensava a respeito. O programa misturava, além de comida, também um interessantíssimo retrato cultural dos lugares que visitava. Foram oito temporadas de sucesso.

Nos últimos tempos, Bourdain havia se envolvido em outro projeto semelhante, Parts Unkonown, igualmente exitoso. Bourdain estava casado, e aparentemente feliz, com a atriz Asia Argento. Era sua terceira união. Eram frequentes suas postagens ao lado da mulher e dos amigos nas redes sociais. Reconhecido como um dos mais influentes chefs de cozinha de todos os tempos, responsável por mudar a percepção sobre a importância da culinária em muitos países, especialmente nos Estados Unidos, Bourdain tinha tanto prestígio e dinheiro quanto qualquer um poderia considerar mais do que suficiente. De quebra, a vida parecia ser um grande prazer para ele. Nem por isso, livre de problemas. De angústias. Ou de aflições.

Na última sexta-feira, aos 61 anos, enforcou-se no quarto de hotel onde estava hospedado na França para gravar mais um episódio de Parts Unknown. Não se sabe se deixou carta ou bilhete. Contam-se nas milhares as reações de lamento e estupefação, mundo afora, pela morte de Bourdain.

Kate Spade e Anthony Bourdain são apenas dois exemplo de gente que, apesar da ausência de problemas materiais, e ainda que tenham alcançado sucesso global e fossem reconhecidos pelo talento, sucumbiram diante da vida. O DJ Avicii, morto em abril em circunstâncias semelhantes, e tantos outros anônimos nos quatro cantos do mundo, poderiam ser acrescidos a esta triste lista. Pessoas que ninguém, jamais, diria se tratar de suicidas em potencial. Especialmente porque, diante das generalizações sempre perigosas, tinham vidas de sonho e razões de sobra para serem felizes.

Há muitas horas em que a vida pesa. Mas as tristes circunstâncias das mortes de Spade e Bourdain reforçam a necessidade de que cada um de nós deve, sempre, procurar uma forma de afastar o desespero e renovar a esperança. Não importa quão feliz pareçamos ou, no sentido inverso, o tamanho da carga que a vida nos imponha, é fundamental ter em mente que nesta nossa existência, tudo é precário e transitório. Nada é definitivo e surpresas, ainda que improváveis, são sempre possíveis. Se puder, ajuda rezar, meditar, refletir. Só não vale desistir.

Corrêa Neves Júnior, jornalista e vereador em Franca
email - jrneves@comerciodafranca.com.br 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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