Quem é você?

Nestes meus quase 45 anos de vida, já protagonizei todo o tipo de confusão possível envolvendo nomes e pessoas. Há o caso de dois irmãos, loiros, que conheço desde a infância. Nunca sei qual dos dois está diante de mim.

29/04/2018 | Tempo de leitura: 5 min

“Você se lembra de mim, né?”. A pergunta, normalmente feita de forma despretensiosa, lançada apenas para ouvir como resposta o que, se imagina, seja um óbvio “sim, claro”, pode ter o efeito de um soco no estômago se aquele a quem é dirigida arriscar um “não”. Quem perguntou costuma ficar ofendido, como se a falta de lembrança fosse desfeita, menosprezo, descaso. Ou, no limite, tudo junto. 
 
Exceção feita às doenças degenerativas que costumam chegar com o avanço da idade e consomem, impiedosas, lembranças e memórias, são três as principais razões que levam alguém a não se recordar de uma pessoa que, em algum ponto da vida, já conheceu, conviveu, namorou. Pode ser porque enxerga mal e, desta forma, simplesmente é incapaz de reconhecer o que vê. A segunda hipótese é que sofra de algum grau de prosopagnosia, um distúrbio que faz com que a pessoa tenha grande dificuldade de reconhecer rostos. Ou, ainda, pode ser que seja uma pequena falha qualquer no cérebro do infeliz, que impede que os nomes aprendidos ao longo da vida sejam armazenados de forma correta nas memórias de longo prazo, o que provoca o “esquecimento”. 
 
O que dizer então do azarado que sofre, simultaneamente, dos três problemas: enxerga mal, tem dificuldade para reconhecer rostos e ainda é péssimo com nomes? Sim, você que me acompanha aqui, semanalmente, pode começar a rir. Este é exatamente o meu caso.
 
Tenho ceratocone em ambos os olhos, uma doença progressiva que, no meu caso, muito provavelmente me levará, num tempo não muito distante, a ter que passar por um transplante de córneas. Enxergo embaçado, como se estivesse sempre numa sauna a vapor. Com lentes rígidas, que uso diariamente, melhora significativamente — mas não resolve. É uma visão limitada, que funciona para grandes cenários (vejo o todo sem problemas, o que me permite, por exemplo, dirigir sem riscos) mas que dificulta a leitura, um tormento, e, claro, os sutis detalhes de um rosto.
 
Nunca passei por avaliação médica específica, mas aposto que também sofro em alguma medida de prosopagnosia, porque muitas vezes, diante de uma pessoa, não tenho a menor ideia de quem seja. Ainda que já tenha participado de reuniões, encontros, jantares com meu “ininlembrável” interlocutor. Aquele rosto não me diz nada porque é como se eu não o conhecesse. 
 
Por fim, certamente tenho esta falha na memória de longo prazo, porque nomes sempre me escapam. Para piorar, tenho dificuldade também para estabelecer as relações de parentesco entre as pessoas. Saber quem é primo de quem, que os dois sujeitos bebendo cerveja são concunhados ou recordar que o amigo do meu filho é sobrinho do primeiro namorado da minha filha são enigmas impossíveis de decifrar. Um dom que invejo enormemente. 
 
Nestes meus quase 45 anos de vida, já protagonizei todo o tipo de confusão possível envolvendo nomes e pessoas. Há o caso de dois irmãos, loiros, que conheço desde a infância. Nunca sei qual dos dois está diante de mim. Simplesmente não consigo dissociar um do outro. Na dúvida, evito tratar pelo nome. Imagino que os irmãos me achem retardado — ou louco. 
 
Professoras de escola, por exemplo, são outro desafio, tenham sido mestres em qualquer tempo da minha vida. Sei que a pessoa era querida, que me deu aula, sinto que gostava muito dela... mas o nome, simplesmente, não vem. Ainda bem que, neste caso, um “professora querida” costuma resolver. Ou pelo menos, disfarça melhor.
 
Colegas ou ex-colegas de trabalho podem ser um grande tormento. Demoro a gravar o nome e, se deixamos de conviver, piora. Na última campanha eleitoral, numa caminhada pela avenida Brasil, entrei numa loja e fui abordado por uma funcionária do local. Me tratou com carinho, perguntou da minha mãe, do meu irmão mais novo, quis saber dos meus filhos. Tentei disfarçar, mesmo porque estava cercado do pessoal da campanha e temi que me tomassem por louco. Não surtiu efeito. Depois de alguns minutos, a mulher disparou a pergunta avassaladora. “Você não se lembra de mim, né?”. Constrangido, admiti que não. “Trabalhamos juntos cinco anos no jornal, assim que você voltou de São Paulo. Foi um tempo bom”, disse a mulher. Tenho certeza que foi, ainda que me lembre do fato, mas não da pessoa. 
 
Absurdo dos absurdos, nem mesmo minha mulher está imune às falhas da minha memória e percepção. Há uns dois anos, depois de um dia inteiro de reuniões e muito trabalho, combinamos de jantar num restaurante da cidade. Como sempre, ela chegou primeiro. Entrei apressado e esbarrei numa morena que estava no meu caminho. Milena, até então loira, havia pintado o cabelo. Foi o suficiente para que eu não a reconhecesse de imediato. “A gente tá aqui, pai”, disse o João, sem entender porque eu havia passado direto. Você acha mesmo que alguma explicação funcionou? A tromba foi inevitável.
 
Só não fico mais traumatizado porque andei conhecendo gente tão ruim para reconhecer pessoas e se lembrar de nomes quanto eu. Um deles é grande amigo. Médico, competentíssimo, é absolutamente desmemoriado para pessoas. Dia desses estávamos num bar, conversando, quando uma amiga do trabalho me ligou para saber se eu podia passar o telefone do médico. Disse que nem precisava, porque estava diante dele. Ela disse que o doutor tratava o seu irmão e ela queria tirar uma dúvida sobre um medicamento. Disse ao meu amigo o nome do seu paciente. “Não me lembro”. Dei então alguns detalhes da enfermidade. “Tem muitos casos parecidos”, rebateu. Me enviaram então uma foto do paciente. O doutor olhou a imagem no celular e vaticinou. “Não tenho ideia de quem seja”. Perguntei então à minha amiga quando havia sido a última consulta. “Semana passada”, esbravejou ela, incrédula, para completar: “trata com ele há sete anos”. Pois é. Acontece. 
 
Se uma hora qualquer a gente se encontrar e, mesmo que nos conheçamos, já tenhamos conversado, trabalhado em algum projeto comum ou o que quer que seja que nos conecte e, ainda assim, parecer que não me recordo de você, não me leve a mal. Não é arrogância, desprezo, “metideza”, orgulho, nem nada disso. É simplesmente uma soma de incapacidades que faz com que, numa frequência indesejável, não consiga associar imediatamente o nome à pessoa. Me desculpe. E, se puder, me fale de pronto seu nome e de onde nos conhecemos. Você vai me ajudar demais. E, eu, ficarei eternamente grato — e aliviado. Tenha certeza disso.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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