A culpa é do cadáver?

Desde a execução de Marielle, o que deveria servir de exemplo para união dos brasileiros em torno de uma tragédia que não pode se repetir transformou-se no oposto. Sobram tentativas de desqualificar a vereadora.

18/03/2018 | Tempo de leitura: 4 min

Que os níveis de ódio em qualquer debate público no Brasil — quer seja sobre religião, sexo, música, esportes e, especialmente, política — há muito ultrapassaram os limites do razoável não é novidade para ninguém. Mas o que se seguiu à morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), 38 anos, covardemente assassinada com tiros na cabeça, e do motorista Anderson Gomes, na noite da última quarta-feira, no Rio de Janeiro, expôs de maneira dramática sombrias facetas de um grupo considerável de brasileiros: a intolerância absoluta, o desprezo por quem pensa diferente, a tentativa de justificar uma atrocidade como consequência inevitável das opiniões da vítima. Por mais inacreditável — e triste — que possa parecer, a verdade é que parte significativa dos brasileiros simplesmente acredita que Marielle mereceu morrer. 
 
Marielle era, para mim, uma absoluta desconhecida. Ignorava sua luta, sua trajetória e sua biografia. Do que pude ler e descobrir desde então, havia muito o que admirar nela. Negra, nascida numa família pobre e “cria da favela da Maré”, fez-se praticamente sozinha neste Rio de Janeiro que, não é de hoje, está de pernas pro ar. Começou a trabalhar aos 11 anos, foi mãe aos 19, estudou num cursinho pré-vestibular comunitário na própria favela. Graduou-se em Ciências Sociais com a ajuda de uma bolsa do Prouni. Começou sua militância em defesa dos direitos humanos no início dos anos 2000, depois de ver uma amiga ser morta por uma bala perdida durante um tiroteio entre policiais e traficantes.
 
Ingressou na política em 2006 na campanha do então candidato Marcelo Freixo (PSOL), que disputava uma vaga de deputado estadual. Freixo foi eleito e Marielle acabou nomeada sua assessora parlamentar. Dez anos depois, disputou sua primeira eleição. Com os 46 mil votos que arregimentou, acabou eleita vereadora na cidade do Rio de Janeiro. Tinha acabado de concluir seu primeiro ano de mandato. Não houve tempo para mais nada. 
 
Na última quarta-feira, por volta de 19h, chegou na Casa das Pretas, no bairro carioca da Lapa, onde mediaria um debate. Saiu de lá às 21h. No carro que ocupava, estava acompanhada por uma assessora e pelo motorista Anderson Gomes. O trio foi perseguido por homens fortemente armados. Eram 21h30 quando os assassinos conseguiram emparelhar os carros. Trezes disparos foram efetuados. Nove acertaram a lataria, quatro os vidros. Marielle foi atingida com três tiros na cabeça e um no pescoço. Anderson recebeu três projéteis nas costas. Ambos não tiveram qualquer chance. A assessora, atingida por estilhaços, sobreviveu. 
 
Segundo investigações preliminares, a munição, de pistola 9mm, pertencia a um lote comprado em 2006 pela Polícia Federal e que foi roubado, anos depois, da sede dos Correios da Paraíba. Foi deste mesmo lote que saíram as balas utilizadas na execução de 17 pessoas em Osasco e Barueri, em 2015, na maior chacina da história de São Paulo. Também foi esta a mesma fonte dos projéteis que abasteceram uma intensa guerra entre facções em São Gonçalo, no Rio, com saldo de 5 mortos. Cerca de 1,8 milhões de cápsulas compunham o lote. Sabe-se lá quantas vidas já ceifaram Brasil afora.
 
Desde a execução de Marielle, o que deveria servir de exemplo para união dos brasileiros em torno de uma tragédia que não pode se repetir transformou-se no oposto. Sobram tentativas de desqualificar a vereadora. Colocaram no mesmo saco a defesa que ela fazia dos direitos humanos com uma suposta ligação com traficantes, da qual sobram especulações na mesma proporção em que faltam maiores evidências. Tentaram responsabilizar sua ideologia política, de esquerda, como causa da violência que a vitimou, numa lógica para lá de infantil de imaginar que o fato de existirem comunistas e socialistas seja a razão do descontrole da segurança pública na região fluminense. Criticaram jornalistas por abrir amplos espaços para o crime, usando como “argumento” um vídeo em que a vereadora aparecia protestando contra a rede Globo, como se o fato dela criticar a imprensa a fizesse menos digna de ter sua tragédia registrada. Pior, alguns resgataram suas críticas à intervenção federal no Rio para “comemorar” sua execução, como se ela fosse um obstáculo que acabara de ser removido.
 
Nunca me sentei para conversar com Marielle Franco. Se tivesse tido a oportunidade, tenho a mais absoluta convicção de que discordaríamos de praticamente tudo. Do diagnóstico dos problemas nacionais às soluções possíveis; do tamanho do Estado ao papel da livre iniciativa; da necessidade de intervenção federal aos caminhos possíveis para enfrentar o tráfico de drogas, a corrupção e o crime organizado. Nada disso faria a conversa infrutífera. Qualquer debate em que todos concordam costuma produzir nenhum resultado. As grandes ideias surgem a partir do enfrentamento de opiniões diferentes. É uma lição fundamental que os brasileiros, tristemente, parecem ter deixado de lado.
 
Marielle Franco é uma vítima. Sua execução, um ato de barbárie e um atentado à democracia na medida em que agiram, de forma brutal e covarde, para calar uma voz que incomodava. Acertaram ainda um motorista que apenas fazia o seu trabalho. 
 
Estamos diante de uma barbárie. Deveríamos estar todos, independente de nossas convicções, enlutados. Que os responsáveis sejam identificados, capturados, processados — e punidos. E que os brasileiros que viram em Marielle alguém merecedora de seu destino possam, urgentemente, rever suas posições. Nada justifica o que houve. Muito menos, a defesa de um ideal. Ainda que discordemos, radicalmente, dele. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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