O coreto

Se os detalhes da história do coreto pouca gente conhecia, os desdobramentos da iniciativa de Wagner Pires são de amplo domínio público. Quis fazer uma boa ação. Foi muitíssimo bem intencionado.

04/03/2018 | Tempo de leitura: 4 min

Franca mal tinha passado de 30 mil habitantes — apenas dez mil deles vivendo na “cidade”; o resto, na zona rural — naquele início de século XX. Corria o ano de 1908 quando o então prefeito, o coronel Martiniano de Andrade, de quem praticamente nada sei além do nome, resolveu fazer uma pequena obra no Largo da Estação. 
 
O lugar, um modesto descampado em frente a estação ferroviária da Mogiana, servira durante anos como curral para o embarque do gado que seguia, de trem, rumo a Santos. Naqueles anos 10, convertera-se no espaço de desembarque dos passageiros que chegavam à cidade cada vez em maior número. Pode-se supor, com razoável margem de acerto, que era ali que o visitante — ou novo morador — forjava sua primeira impressão sobre Franca. Talvez por isso o coronel Martiniano de Andrade tenha mandado construir no espaço um coreto de madeira, adornado com umas poucas árvores, num primeiro esforço para embelezar a região.
 
Tudo seguiria mais ou menos do mesmo jeito por quase três décadas até que, em meados dos anos 30, rebatizada de Sabino Loureiro, a praça receberia um novo coreto, de alvenaria, e um projeto paisagístico —  vale ressaltar, tudo elaborado por um certo J. E. Chauvière, arquiteto francês contratado pela prefeitura e responsável por redefinir outras tantas praças da cidade, inclusive, a da Matriz. 
 
Mais vinte anos se passariam até que, na década de 50, a praça recebeu outra ampla reforma, com instalação de alguns monumentos e substituição do piso. O coreto, já histórico, não sofreria intervenções relevantes. De lá para cá, praticamente nada mudou. A remodelação dos anos 50 acabaria por definir os contornos da praça como a conhecemos hoje, ainda que vez ou outra tenha recebido pequenas reformas.
 
Não sei se foi mera coincidência, mas exatamente quando completou 100 anos de existência, em 2008, o coreto foi “tombado” pelo Condephat (Conselho Municipal de Defesa do patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Franca). A partir do tombamento, nenhuma mudança que altere as características originais da construção pode ser feita, por quem quer que seja, qualquer que seja o pretexto ou motivação. Por lei, o coreto tem que ser mantido com suas características originais. Não pode ser demolido nem modificado. É um reconhecimento ao seu valor histórico e arquitetônico. E um alerta sobre a necessidade de se preservar, um pouco que seja, do passado que nos define.
 
Duvido que o coronel Martiniano de Andrade, ao mandar alguém cortar algumas dúzias de tábuas para erguer um coreto rústico num distantíssimo ano de 1908, tenha imaginado, por um instante sequer, que 110 anos depois sua iniciativa estaria “viva”, após algumas modernizações, e provocando uma intensa polêmica. Também duvido que o cabeleireiro Wagner Pires, que no domingo passado decidiu pintar o coreto de vermelho, com mensagens de autoajuda, tenha suposto, por um segundo que fosse, que cometia uma ilegalidade. Ainda assim, foi o que aconteceu.
 
Se os detalhes da história do coreto pouca gente conhecia, os desdobramentos da iniciativa de Wagner Pires são de amplo domínio público. Para resumir, o cabeleireiro se disse cansado de passar pelo coreto, próximo de onde tem um salão, e se deparar com a sujeira, o cheiro de urina, o descaso. Pegou umas vassouras, baldes, um pouco de tina, pincel... e colocou mãos a obra. Limpou o lugar, pintou o coreto, acrescentou umas frases simpáticas. Quis fazer uma boa ação. Foi muitíssimo bem intencionado. Nem por isso, deixou de errar. A lei é a lei, gostemos ou não dela.
 
Além disso, ainda que não fosse tombado, jamais a intervenção protagonizada por Wagner Pires poderia ser feita como foi. Da mesma forma que ele decidiu colocar frases de cunho cristão, alguém poderia se achar no direito de, depois dele, fazer inscrições umbandistas. E outro, de pintar de novo com mensagens budistas. Um infeliz poderia colocar o símbolo do seu time preferido. Alguém sem noção poderia pintar imagens eróticas. A roda não teria fim, com cada qual sentindo-se no direito de intervir de acordo com suas preferências pessoais. Não é difícil entender porque normas, regras — e limites — precisam ser respeitados.
 
Ainda assim, a iniciativa de Wagner Pires teve o mérito de lançar luz sobre um problema recorrente: o pouco caso que o poder público reserva para a manutenção dos espaços de convivência, como as praças, e tanto pior, para a preservação do patrimônio histórico. Sempre há a justificativa de que faltam recursos, o que ninguém ignora, mas as dificuldades orçamentárias não podem servir de desculpa para a inação, o pouco caso, o abandono. Como ficou comprovado, a prefeitura não precisou de muito tempo nem de somas relevantes de recursos para acionar suas equipes e passar uma demão de tinta tão logo foi constatada a intervenção de Wagner Pires na última segunda-feira. Também não precisou de uma força-tarefa nem suplementação orçamentária para repetir a ação e novamente recuperar o local depois que pichadores atacaram o coreto, na terça-feira. São ações simples, mas eficazes.
 
Deveria agora o poder público aproveitar a motivação de gente como Wagner Pires para, com apoio da iniciativa privada — e, aposto, não faltam empresas e entidades dispostas a colaborar — tratar de recuperar, cuidar e zelar de praças e monumentos. “Um homem sem lembranças é um homem perdido”, ensina o dramaturgo francês Armand Salacrou. Uma cidade também. 
 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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