Tic tac

A maturidade reforça também a beleza da vida, esta dádiva que nos é concedida de forma tão misteriosa, imprevisível, tão cheia de altos e baixos, de vitórias e derrotas, de idas e vindas.

04/02/2018 | Tempo de leitura: 4 min

Completo hoje 44 anos. Nunca entendi direito se foi resultado da profunda timidez que me assombrou até o final da adolescência; se foi culpa do calendário que fez com que a data caísse no período de férias escolares, o que dificultava bastante as festinhas na infância; se é herança genética do meu pai, que tinha pavor da simples menção da palavra “parabéns” quando era chegado o momento de comemorar mais um ano de vida; ou se é mera característica pessoal — o fato, quaisquer que sejam as razões, é que nunca gostei muito de celebrar meu próprio aniversário. 
 
Troco a festa pela reflexão. 
 
Quanto mais os anos avançam, mais densos ficam estes mergulhos na alma. Com o saldo acumulado de quem, estatisticamente, muito provavelmente já ultrapassou a metade da vida, é hora de alguns balanços e umas tantas revisões que seriam inviáveis, pela falta de perspectiva, anos atrás. A mais óbvia é que nem tudo é possível — nem mesmo naqueles pensamentos que temos conosco na quietude da cama, na privacidade dos diálogos que travamos em silêncio com o próprio pensamento. Simplesmente, não há mais tempo.
 
As diferentes etapas de vida dos meus filhos são a mais perfeita tradução deste efeito do tempo sobre as nossas existências — e sobre minha vida, em particular. João, o caçula, tem sete anos. Troca de sonho como quem troca de roupa. Até uns dois anos atrás, queria ser pedreiro, para construir “pédios”, como dizia. Na sequência, teve um rápido flerte com a ideia de ser piloto de Fórmula 1, sonho abandonado quando foi informado de que precisaria perder peso para ser competitivo. 
 
Depois, encasquetou que viraria jogador de futebol, o que o levou a adotar o topete do Neymar, seu ídolo, e simultaneamente também cozinheiro, para vencer o Masterchef. Quis ainda ser veterinário, fazendeiro, cientista. Mais recentemente, converteu-se num ninja e, influenciado pela saga Guerra nas Estrelas, tentou transformar-se em cavaleiro Jedi, quase ao mesmo tempo em que decorou todos os feitiços de Harry Potter e, depois de aprender a “conjurar o patrono”, queria saber como estudar em Hogwarts, a escola de bruxos.
 
Fascinado por jogos em tablets, celulares e afins, anda dedicando horas diárias para se “aperfeiçoar” no Minecraft e no Roblox. Descobriu um tal de “AuthenticGames”, canal no Youtube de um certo Marco Tulio, um garoto de 20 anos que grava vídeos para mostrar como superar obstáculos e avançar fases. João começou a gravar seus próprios vídeos depois de chegar a 289ª. fase de Roblox. “Quero ser youtubber, papai. Ter meu próprio canal”. Pode? Claro que pode. Especialmente porque, numa rápida pesquisa, descobri que o tal Marco Tulio acumula nada menos de 9 milhões de seguidores, emprega 30 pessoas e anda faturando mais de R$ 35 milhões por ano. Vai fundo, meu filho.
 
Minha primogênita, Julia, é hoje uma linda mulher de 19 anos, inteligente, dedicada, que cursa o segundo ano de audiovisual na USP, em São Paulo, e acelera o processo que transforma os sonhos em projetos. Não fala mais em ser desenhista, nem sei se ainda se lembra de que até há pouco tempo insinuava que seria música de uma banda qualquer.... Contestadora como convém a qualquer jovem idealista, vê injustiças em todo o lugar e, com vigor e paixão, defende e luta pelos seus pontos de vista. Mas, já traz um consigo um certo pragmatismo que chega com a fase adulta. 
 
Corre atrás de estágios, analisa opções, se divide entre o mergulho na carreira como diretora de fotografia na indústria de cinema ou o salto na direção da vida acadêmica, que também a seduz. Enquanto isso, vive, intensamente, viajando, indo aos shows que a fascinam, namorando... Não faltam a ela inúmeras possibilidades — até mesmo, para mudar completamente de planos e aspirações, se quiser. Ou para mudar o mundo, como sonha.
 
E eu? Aos 44 anos, as chances não são as mesmas. É claro que a mesma estatística que mostra que já passei da metade da vida também sinaliza que, se nada de muito inesperado acontecer, ainda tenho uns bons anos pela frente. Mas, no campo das opções, nem tudo mais é viável. Mudanças e recomeços são sempre possíveis, mas nesta altura do campeonato, costumam estar restritas aos limites fixados pelo que a própria trajetória pavimentou. Dá para entrar na política, como fiz no ano passado. Ou escrever um livro. Experimentar outros formatos na comunicação. Talvez me aperfeiçoar como cozinheiro. Mas virar astronauta, sonho de infância, e participar da missão que vai colonizar Marte, prevista para a próxima década, é uma possibilidade sepultada pelo tempo e pelas escolhas. Ainda que esta última opção, aposto, faça brilhar os olhos dos muitos desafetos acumulados em anos de jornalismo e nestes primeiros momentos na política.
 
De tudo, a maturidade reforça também a beleza da vida, esta dádiva que nos é concedida de forma tão misteriosa, imprevisível, tão cheia de altos e baixos, de vitórias e derrotas, de idas e vindas. 
 
Evitar cometer os mesmos erros, lutar por aquilo em que se acredita e vibrar com as pequenas vitórias cotidianas é o que de melhor podemos fazer com o tempo que nos resta. O aniversário a gente pode até deixar sem festa. Mas a vida — ainda que tão difícil, sempre bela — precisa ser celebrada. Sempre.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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