O polêmico decreto

O decreto estabelece que está proibido remover involuntariamente as pessoas do local que estejam ocupando (...) ou tomar medidas que lhes forcem o deslocamento.

28/01/2018 | Tempo de leitura: 4 min

Fui surpreendido, aposto que da mesma forma que 99,9% da população francana, com a publicação, na edição do último 10 de janeiro do Diário Oficial do Município, do decreto 10.728. Assinado pelo prefeito Gilson de Souza (DEM), o documento determina uma série de procedimentos que devem ser adotados por todos os envolvidos na abordagem dos moradores de rua.
 
Na teoria, trata-se de um conjunto de normas editadas na esteira de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduto) assinado pelo prefeito com o Ministério Público — registre-se, da mesma forma que o decreto, sem que tivesse sido prévia e minimamente discutido com a Câmara de Vereadores, com Organizações Sociais, com a população ou com quem quer que seja — para garantir respeito às garantias individuais dos moradores de rua e evitar excessos ou violações. Na prática, converteu-se numa espécie de salvo-conduto para o morador de rua, tornando praticamente impossíveis ações para o combate ao crime; ao constrangimento e às agressões protagonizadas por alguns marginais travestidos de pedintes contra mulheres e idosos, especialmente; à ocupação indevida dos espaços públicos; à limpeza urbana; e até mesmo, no limite, ao necessário tratamento especializado a quem foi vencido pelas drogas ou álcool. 
 
Não é exagero dizer que, desde então, uma redoma virtual foi criada em torno dos moradores de rua. É óbvio que ninguém, em sã consciência, defende ações que retirem dos moradores de rua suas roupas, agasalhos, documentos, livros, mantimentos, mochilas, roupas. O decreto trata disso, o que é até redundante, porque ninguém deveria poder tirar nada de ninguém, seja ou não morador de rua. 
 
Mas o documento não se limita a isso — vai muito além. No parágrafo II do Artigo 3º, por exemplo, além dos itens acima já mencionados, estabelece que sofás, camas e até fogões são considerados “itens portáteis de sobrevivência” e só poderão ser removidos se houver “mandado judicial”. Imagine alguém que se instale na porta de um comércio regularmente estabelecido, que coloque ali sofá e fogão e comece a fazer refeições ou o que quer que seja... Ninguém pode mais falar nada? O comerciante faz o quê? Baixa as portas? Muda de endereço? Diz o que para a sua clientela?
 
Se um conjunto de moradores se fixar numa vizinhança qualquer e fizer barulho, produzir uma montanha de lixo, incomodar as famílias ou suas crianças, igualmente não resta o que fazer. No mesmo artigo, em seu parágrafo IV, o decreto estabelece que está proibida “remover involuntariamente as pessoas do local que estejam ocupando (...) ou tomar medidas que lhes forcem o deslocamento”. 
 
Ainda que seja apenas para tirar o lixo, lavar a calçada ou fazer reparos no espaço público, os moradores de rua terão que ser avisados previamente, os pertences completamente preservados — e tudo tem que ser retornado ao local tão logo a limpeza termine. E se no espaço dos moradores de rua houver gritaria, brigas ou prática de sexo na cama instalada no espaço público? A vizinhança faz o quê? Os pais dizem o que para seus filhos pequenos? Estão todos condenados a mudar de endereço? 
 
O emocionado desabafo do secretário de Ação Social, Vanderlei Tristão, dá uma boa medida das dificuldades surgidas. “Esse decreto parou tudo. Estamos aqui sem saber o que fazer. É muito difícil. (...) Fui pessoalmente em cada canto dessa cidade. Trabalhei de madrugada, conversei pessoalmente com boa parte desses moradores de rua. Conheço a história de vida de cada um desses com quem conversei (...) Quantas vezes não deixei minha família para estar na rua, tentando convencer essas pessoas a aceitarem ajuda? (...) Só que do jeito como está sendo visto esse trabalho, com essas acusações e imposições, é muito difícil”, disse o secretário, em entrevista publicada domingo passado pelo Comércio. 
 
Ainda pior do que os itens que o decreto traz expresso são as premissas que ele não traduz em palavras, mas traz embutido em seu espírito. Aparentemente, os integrantes do Ministério Público, da Defensoria e o prefeito acreditam que os moradores de rua são um fim em si mesmo, um problema incontornável, um drama insolúvel. O documento preconiza apenas o que não se pode fazer, garantindo que os moradores de rua continuem... moradores de rua. 
 
Obviamente, muita discussão ainda vai acontecer. Tão logo a Câmara Municipal abra o ano legislativo, vou reforçar proposta que já fiz no final do ano passado para uma grande conferência, com a participação mais ampla possível de representantes da sociedade civil, para discutir o problema e apontar soluções. Espero que possamos também discutir eventuais ajustes no decreto, ou que os promotores ajudem na sua correta interpretação para que não restem impossíveis quaisquer ações do poder público. Os moradores de rua merecem respeito. O resto da sociedade, também.
 
PS: por maiores que sejam as divergências com relação à posição dos promotores de Justiça e da Defensoria Pública, é preciso registrar que nenhum deles agiu ao arrepio da lei. Eles propuseram, de acordo com suas convicções, e o prefeito Gilson de Souza aceitou, o que é absolutamente lamentável. Quem critica, pode e deve fazê-lo, mas com respeito e sem ataques pessoais. O que mais vi nas redes sociais foram xingamentos, provocações e ataques gratuitos aos membros do MP e da Defensoria. Além de deselegante, em nada ajuda o debate. Muito menos, a solução.
 
Corrêa Neves Júnior, jornalista e vereador em Franca
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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