Sabores de uma Franca que não existe mais

Nasci e cresci numa Franca muito diferente daquela que, quatro décadas depois, segue meu lar. Naqueles anos 70 e 80, a cidade era muito menor.

03/12/2017 | Tempo de leitura: 4 min

Nasci e cresci numa Franca muito diferente daquela que, quatro décadas depois, segue meu lar. Naqueles anos 70 e 80, a cidade era muito menor. E as noções de distância, também, muito diferentes. O jardim Consolação, para onde minha tia Sandra se mudaria, era periferia. O Noêmia, que ainda nem se chamava assim e era então um aglomerado de chácaras, onde viveria tempos mágicos a partir de meados dos anos 80, podia ser definido, sem exageros, como o fim do mundo. Ainda não havia calçadão, a rodoviária ficava onde hoje é o terminal central de ônibus e o Vale dos Bagres, extinto para abrir caminho para a avenida Hélio Palermo, representava uma opção de lazer e tanto com suas quadras de esportes e áreas verdes.
 
Por estes tempos, meus primos Junão e Gustavo costumavam vir de São Paulo, onde sempre moraram, nos visitar. Quando as férias chegavam, ou se surgia um feriado prolongado, lá vinham eles, acompanhados pela mãe, a tia Marta, passar uns dias por aqui. Era uma delícia. A festa para gente, criança, começava já no desembarque, na rodoviária, que era então acoplada ao mercado municipal. Nem bem eles desciam do ônibus e a gente já entrava no mercado com rumo certo: a barraca de vitaminas, à esquerda, logo na primeira “rua”. Num tempo em que não havia por aqui açaí, gelatto italiano nem MacMeleca, bom mesmo era tomar a vitamina no mercado. Tinha dois tipos: frappé de abacate e mista. Com exceção do meu primo Gustavo, que ia de mista, todo mundo se afogava mesmo era no frappé, geladíssimo, tão espesso que muitas vezes o único jeito era abandonar o canudinho e recorrer a uma colher para sorver aquela maravilha. Nunca encontrei outro igual.
 
Dali, a caminho de casa, na Vila Flores, a gente parava na Panificadora Pucci, do outro lado da rua — no mesmo lugar onde resiste, ainda que radicalmente transformada — para comprar pão italiano. Comprido, crocante, tinha a casca tão dura — no melhor sentido — que a gente, muitas vezes, machucava a boca ao comer um sanduíche de presunto com maionese. Quem se importava? Era simplesmente impossível se contentar com apenas um pedaço. Também ficava muito bom com chancliche, o queijo apimentado árabe que descobri ali.
 
Vez ou outra, passava as tardes com meu pai no jornal, que ficava na Ouvidor Freire, onde hoje é o Poupatempo. Invariavelmente, ele me “convocava” para acompanhá-lo na sua ronda diária nos bancos. Íamos ao Credireal, ao SulBrasileiro, ao Banespa. No caminho, sempre dava um jeito de convencer meu pai a parar num lugar que, para mim, era a “Pastelaria Azul”. Ficava num trecho hoje transformado em calçadão, mais ou menos no cruzamento da rua do Comércio e a Voluntários da Franca. Não era um lugar bonito. Não tinha muita coisa interessante. Não era confortável. Mas o pastel de queijo derretidíssimo, sequinho, era de tirar o chapéu. Acompanhado de um guaraná gelado, valia sempre a visita.
 
Outra boa opção nas cercanias do jornal era a Casinha do Pão de Queijo, que ficava praticamente em frente à antiga Eralves, onde hoje está instalado o Bom Prato. Comer no balcão o pão de queijo quentinho, opcionalmente recheado com presunto e queijo ou catupiry — verdadeiro, era uma experiência e tanto. Nada de versões gigantes, frias, molengas, embatumadas. As fornadas saíam com grande frequência, o que garantia sempre um pão de queijo fresquinho, no tamanho certo, que exalava um perfume que atraía instantaneamente os fregueses. Era impossível resistir. 
 
Tinha também a puxa vendida por uma senhora que ficava com seu carrinho em frente à loja matriz do Magazine Luiza. Dia após dia, ano após ano, lá estava ela, esticando a puxa, incansavelmente. Doce, elástica, listrada de branco e preto, grudava nos dentes e devia engordar horrores. Mas era muito boa. Nunca soube o que foi feito da “tia” da puxa, mas dia desses tive um deja vu. Ao passar por ali, vi uma senhora num carrinho de puxa, exatamente no mesmo lugar que a minha memória apontava. Certamente, não é a mesma, porque os anos dificilmente permitiriam. Mas que lembrava muito a vendedora da minha infância, isso lembrava. Espero que a puxa continue tão boa quanto sinaliza a minha memória.
 
Por fim, há um bauru. Despretensioso, simples, delicioso. Era feito no Gasparini. Costumávamos comer sempre nas noites de domingo. A gente passava de carro, encomendava os lanches e ficava dando umas voltas enquanto esperava ficar pronto. Duas fatias de pão de forma, presunto, muçarela, tomate. Tudo isso ia para o fogo em formas de ferro fundido, com muita manteiga. Era servido torradinho, quase queimado, o queijo derretido misturado ao tomate... Uma obra de arte. Sinceramente, nunca entendi porque, há alguns anos, tiraram do cardápio. Faz falta. 
 
Franca é hoje, obviamente, muito mais moderna, desenvolvida e cosmopolita do que a cidade da minha infância. Ainda assim, quando caminho pelo Centro, sou capaz de jurar que sinto o cheiro do pastel, do pão de queijo, o copo gelado da vitamina do mercado, a textura grudenta da puxa. Salivo só de lembrar do bauru. São os cheiros e sabores de uma Franca que não existe mais. A não ser, na — doce — memória afetiva de quem viveu aqueles tempos. Parabéns, Franca! Hoje, como sempre, o meu lar.

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