Conversas com meu pai

Sempre gostei de conversar com meu pai. Nasci quando ele tinha 46 anos, numa época em que pouca gente experimentava a paternidade nesta fase da vida. Mamãe era muito mais jovem, uma menina de vinte e poucos anos.

20/08/2017 | Tempo de leitura: 4 min

Sempre gostei de conversar com meu pai. Nasci quando ele tinha 46 anos, numa época em que pouca gente experimentava a paternidade nesta fase da vida. Mamãe era muito mais jovem, uma menina de vinte e poucos anos, mas o fato é que papai tinha idade — ainda mais naqueles anos 70 — para ser meu avô. Não que isso fosse um problema. Adorava e ficava absolutamente fascinado com tudo que ele tinha vivido. A dureza dos primeiros anos na roça em Itirapuã, as aventuras de quando foi sozinho para São Paulo, sua carreira como jornalista, a passagem pela política e os anos como secretário de Estado, seus encontros com presidentes, cientistas, artistas, gente que eu conhecia dos livros de história. Sua volta para Franca sem nada, depois dos quarenta anos, para assumir o Comércio. Papai já tinha feito muita coisa antes mesmo que eu nascesse.
 
Quando criança, costumava ficar no alpendre de casa todas as tardes, na rua Manacá, esperando papai chegar para o lanche. Tentava adivinhar por onde o Corcel branco que ele dirigia se aproximaria. Quase sempre, pela rua Vitória Régia, o que permitia uma passada pela padaria Pucci, de onde trazia pão italiano, presunto e queijo, leite, de vez em quando brioches ou pão sírio. Adorava aqueles fins de tarde, antes que ele voltasse para a jornada noturna no Comércio.
 
Na adolescência, já morando na chácara, não tinha mais o lanche da tarde. O ritual, adaptado até por conta da escola, acontecia no almoço. Quase sempre ele já estava sentado à mesa quando mamãe nos avisava que o almoço estava servido. Assim que todos se sentavam, o que incluía meus avós maternos, que moravam conosco por estes tempos, ele abandonava a dúzia de jornais que lia e a conversa começava. Os assuntos iam de esporte a política, do que havia acontecido em Franca a alguma revolução num canto qualquer do mundo, da corrida espacial ao desempenho da Francana. 
 
Adulto e “dono” do meu próprio lar, as conversas aconteciam no jornal — ou nos almoços de domingo. Vez ou outra, quando um problema qualquer me obrigava a passar a noite toda trabalhando, aproveitava para pegar o primeiro exemplar que acabara de ser impresso, comprava pão na Estrela e seguia para o edifício Barramares, onde ele morava, para esperá-lo acordar. Ficava na penumbra de um sofá em seu quarto, em silêncio, à espera do momento em que ele e mamãe despertariam, por volta de 6h30. Enquanto mamãe ia para a cozinha passar o café, ele se sentava, colocava os óculos e começava a ler o Comércio que eu havia trazido, página por página, percorrendo tudo com atenção... Meu maior orgulho é quando dizia que o jornal “estava bom”. Que alívio.
 
Há doze anos não converso com meu pai. Até tento, mas teimoso como ele só, papai não responde. Pelo menos, não com palavras. Ele sempre repetia que, apesar de todas as dificuldades, adorava viver e que só morreria “sob protestos”. Deve estar irritado até hoje com a vitória da morte naquele 18 de agosto de 2005. Mas apesar do seu silêncio, não deixo de me dirigir a ele todas as noites — e, muitas vezes, ao longo dos dias, quando me deparo com uma situação difícil, com um problema para o qual não tenho a solução naquele instante, diante de um episódio qualquer que gostaria muito de compartilhar com ele.
 
Neste tempo todo, já contei para ele muitas peripécias do João, a cada dia mais parecido conosco, e que lamento muito que o tempo não tenha permitido que se conhecessem pessoalmente. Disse como fiquei feliz com as muitas conquistas de sua neta Julia, transformada hoje numa mulher incrível. Sei que ele estaria cheio de orgulho de vê-la aprovada em primeiro lugar na USP. Sussurrei para ele que a mamãe está muito mais bonita hoje em dia do que há 12 anos — e que, independente, cuida da sua própria casa, dirige seu carro, trabalha duro, viaja sozinha. Tudo isso certamente o deixaria cheio de ciúmes.
 
Dividi com ele minhas preocupações sobre a crise econômica e política no Brasil, sobre as profundas mudanças no negócio da comunicação e como isso representa um desafio e tanto para gente. Lamentei com ele o fato de não ter convivido mais de perto com minha mulher, Milena, a quem papai conheceu apenas como advogada. Contei muito do meu trabalho na Câmara de Vereadores e perguntei insistentemente como ele conseguia se manter indiferente aos ataques covardes que sofria, perpetrados por idiotas que, depois, apareciam para apresentar desculpas esfarrapadas... Admito que briguei com ele também, especialmente por conta do meu irmão por parte de pai, Rafael, morto recentemente por um câncer maldito. Por que, meu Deus, ele não se aproximou do filho que era, obviamente, seu? Muito sofrimento podia ter sido atenuado. 
 
Por mais que insista, papai não responde da mesma forma que fazia quando estava entre nós. Mesmo assim, tenho certeza de que me escuta. E, ainda que não verbalize, também me aconselha, me ampara, me conforta, me fortalece, me inspira e me guia de um jeito que não sei traduzir em palavras. Por que assim fazem os bons pais com seus filhos. Assim sempre foi meu pai comigo. E, é assim que não apenas me recordo dele, como também o mantenho perto de mim. Para sempre.
 
 
 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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