A morte de Marisa Letícia

A morte da ex-primeira-dama, assim como sua vida, tampouco foi comum, quer seja pela natureza do que a vitimou, quer seja pelas circunstâncias que cercaram seu passamento.

05/02/2017 | Tempo de leitura: 4 min

Marisa Letícia teve uma vida incomum. Nascida numa família de descendentes de italianos, viveu num sítio até os cinco anos de idade. Mudou-se então para São Bernardo do Campo e, pouco tempo depois, arrumaria seu primeiro emprego: pajem. Tinha nove anos. Cuidou de bebês até os 13 anos, quando conseguiu um emprego como embaladora na fábrica de chocolates Dulcora. Ali permaneceria até os 21 anos, época em que, muito provavelmente, enfrentou a primeira grande tragédia de sua existência. Recém-casada e grávida de sete meses, Marisa Letícia acabou viúva quando seu marido, motorista de táxi, foi assassinado durante um assalto. 
 
Três anos depois, precisou ir ao Sindicato dos Metalúrgicos de ABC atrás de uma papelada para garantir a pensão do marido morto. Foi quando conheceu Lula. O interesse que despertou no então presidente do sindicato, também viúvo - sua primeira mulher havia morrido no parto - foi imediato. Começaram a namorar e, sete meses depois, estavam casados. Pelos 43 anos anos seguintes, permaneceriam juntos. Marisa Letícia participou das greves lideradas por seu marido naquele final dos anos 70; costurou a primeira bandeira do PT, aproveitando um corte de tecido vermelho que tinha em casa; subiu em palanques centenas de vezes nas três ocasiões em que Lula disputou e perdeu a presidência; comemorou muito quando a vitória, enfim, chegou. A menina que abandou os estudos na sétima série tornaria-se naquele início de 2003 a primeira-dama da República Federativa do Brasil. 
 
A morte da ex-primeira-dama, assim como sua vida, tampouco foi comum, quer seja pela natureza do que a vitimou, quer seja pelas circunstâncias que cercaram seu passamento. Desde 2006, Marisa Letícia tinha diagnosticado um aneurisma cerebral. Ela fazia acompanhamento médico, mas não era exatamente uma paciente disciplinada, segundo o relato de seu próprio marido. Fugia dos exercícios físicos, fumava e bebia com regularidade - todos, comportamentos desaconselhados para quem tem uma bomba relógio na cabeça. Na terça-feira, 24 de janeiro, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) severo, do tipo hemorrágico. 
 
Seu calvário durou 11 dias. Ter permanecido todo o tempo em coma talvez tenha sido um privilégio. Marisa Letícia acabou poupada de ver o pior do gênero humano: a falta de consideração mínima que qualquer um merece; a sordidez de profissionais médicos que não respeitam rudimentos da ética profissional; o ódio gratuito manifesto em redes sociais por gente que ataca quem sequer tem condições para se defender; piadas de péssimo gosto indiferentes à dor do outro que qualquer dia desses pode ser de qualquer um de nós.
 
Sim, Marisa Letícia, ainda que jamais tenha tido consciência, enfrentou tudo isso. Desde o instante em que foi internada, acabou vitima não apenas do AVC, mas de uma corrente de ódio. Gente desejando que ela morresse, que sofresse, que fosse assassinada. Algumas dessas “sugestões”, feitas por médicos que vazaram os exames aos quais ela foi submetida. Nem mesmo a mínima intimidade da paciente foi respeitada por aqueles que, uma vez na faculdade, juraram proteger e salvar vidas. “Tem que romper (o vaso sanguíneo) no procedimento. Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, disse o neurocirurgião Richam Ellakkis. Tão delicado quanto foi Romulo Paiva Filho, procurador do Ministério Público de Minas Gerais, que usou sua página no Facebook para vaticinar: “morre logo, peste! Quero abrir meu champanhe”. O primeiro, foi sumariamente demitido. O segundo, será investigado pela corregedoria do MP. Menos mal.
 
Nunca fui petista e, quem me acompanha neste espaço ou nos meus comentários diários no rádio, bem sabe as incontáveis vezes em que duramente critiquei os desvios éticos e os escândalos de corrupção nos governos de Lula e Dilma. Agi com convicção e repetiria todas as críticas sem pestanejar. Pelas mesmas razões, defendi o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de todos os envolvidos neste assalto de proporções épicas perpetrado contra os cofres públicos brasileiros. Tanto o impeachment quanto a Lava jato são legítimos, constitucionais e seguem as regras vigentes. 
 
Também não acho que Marisa Letícia virou “santa” porque morreu. Como qualquer ser humano, ela cometeu erros que não ficam menores com o fim de sua existência. Ainda assim, nada justifica a execração a que foi submetida, os ataques covardes desferidos contra ela, a falta de humanidade mínima de tanta gente, incapaz de respeitar, pelo menos, o momento do luto - e, especialmente, a tristeza e consternação de familiares e amigos.
 
Pelo menos, houve o bom e civilizatório exemplo de Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e do próprio Lula. Apesar das profundas divergências que os separam, FHC e Temer - dentre inúmeras outras autoridades - foram pessoalmente ao hospital transmitir seus sentimentos de pesar a Lula - e por ele foram cordialmente recebidos. Inclusive, o “golpista”, que se faz acompanhar por expressiva comitiva, num sinal de respeito do Estado brasileiro pela morte - e pela trajetória de vida - da ex-primeira dama. 
 
Temer, como era esperado, decretou luto oficial por três dias. São apenas 72 horas de respeito mínimo. Depois, é vida que segue, investigações que continuam, punições que precisam ser aplicadas, responsabilidades que devem ser identificadas, disputa política que precisa acontecer. Mas respeitar o luto - e a memória de Marisa Letícia - não piora nada. No máximo, nos torna um pouco mais humanos e menos insensíveis. Já é alguma coisa.
 
 
Corrêa Neves Júnior, jornalista e vereador em Franca
email - jrneves@comerciodafranca.com.br
 
 
 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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