A morte do Santo

Numa etapa da vida em que a maior parte dos atores já está se desincumbindo do rótulo por conta da idade, Domingos Montagner acabava de conquistar milhões de fãs como galã de novela.

18/09/2016 | Tempo de leitura: 4 min

“O destino não manda sinais. Ele é muito sábio ou muito cruel para fazer uma coisa dessas” 
Oscar Wilde, escritor irlandês
 
 
Horácio foi um poeta que viveu na Roma Antiga, antes de Cristo, sob os governos de Júlio César, Marco Antônio e César Augusto. Escreveu obras que influenciaram incontáveis gerações ao longo de séculos. Nenhuma delas mais marcante do que Odes, por conta de um poema em que o escritor, numa tentativa de seduzir Leoconoe, argumenta que ninguém consegue antecipar o que futuro reserva e que, diante de tanta incerteza, o melhor a fazer é aproveitar o momento. “Carpe diem quam minimum credula postero”, diz o trecho que eternizou Horácio. Numa tradução livre, “aproveite o dia e seja o menos confiante possível no futuro”. É uma poderosa recomendação que mistura advertência e súplica. Não poderia ser mais verdadeira.
 
Me lembrei dos versos de Horácio enquanto acompanhava, incrédulo, na tarde da última quinta-feira, notícias sobre o desaparecimento do ator Domingos Montagner nas águas do São Francisco. As buscas terminariam ainda na tarde daquele mesmo dia, de forma tristíssima, quando o corpo do ator foi encontrado preso a pedras no fundo do rio. As circunstâncias de sua morte eram tão absurdas e inexplicáveis, tão sem nexo ou sentido, que simplesmente não conseguia deixar de pensar na lição de Horácio: “carpe diem”. A vida é precária demais.
 
Afinal, como aceitar que o sujeito grava cenas pela manhã, almoça com seu par romântico na novela num restaurantezinho na divisa entre Sergipe e Alagoas, tira fotos sorridente com policiais que o reconhecem, como habitualmente fazia com qualquer um que se aproximasse, resolve dar um mergulho no rio que está logo ali para se refrescar e, de repente, afunda para a morte? Ou, então, de que forma entender como a atriz Camila Pitanga, que o acompanhava no mergulho, conseguiu se safar da correnteza agarrada a uma pedra, enquanto Montanher, formado em educação física e exímio nadador, acabou tragado por um redemoinho?
 
A própria vida de Montanher, antes de se tornar uma celebridade, acrescenta outros tantos componentes dramáticos ao seu trágico desfecho. Palhaço profissional, Montanher atuou durante anos em circos modestos e peças de teatro de pouquíssima repercussão. Não tinha fama, dinheiro, nem parecia buscar com muito afinco uma coisa ou outra. Até 2011, participara de apenas quatro trabalhos para a televisão, todos sem grande destaque. A esta altura, com 49 anos, sua grande preocupação era conseguir tocar sua companhia de teatro e criar os três filhos que tinha com a produtora Luciana Lima, com quem vivia dede 2001. Foi então que encarnou o Capitão Herculano Araújo, na novela Cordel Encantado, dirigido por Amora Mautner. “Domingos, sua vida vai mudar. Você vai ganhar fama e moral na Globo. As pessoas vão ficar loucas por um galã como você”, vaticinou a diretora. Acertou em cheio.
 
Numa etapa da vida em que a maior parte dos atores já está se desincumbindo do rótulo por conta da idade, Domingos Montagner acabava de conquistar milhões de fãs como galã de novela. Depois de Cordel, viriam outros papeis marcantes, como Paulo Ventura, de O Brado Retumbante; Say, de Salve Jorge; Raimundo Fonseca, de Joia Rara. Tinha 54 anos ao interpretar Santo, protagonista de Velho Chico, seu derradeiro papel.
 
Coincidência das mais absurdas, o seu próprio personagem, semanas antes, quase morreu tragado pelas águas do mesmo São Francisco após sofrer um atentado na trama escrita por Benedito Ruy Barbosa. Na ficção, Santo é atingido por três disparos e, ferido, foge num cavalo até as águas do rio. “Abraçado” pela correnteza, se deixa levar pelas águas. Muito ferido, é resgatado por índios, que passam a cuidar dele. Enquanto se recupera na aldeia isolada, é dado como morto por todos. Menos por Tereza, personagem interpretado por Camila Pitanga, que se recusava a aceitar a morte do grande amor de sua vida. É ela que, após ter visões, sente que ele está vivo, mantém as buscas e consegue encontrá-lo. Na vida real, era Camila Pitanga quem estava ao seu lado no fatídico mergulho. Assim como Tereza, também Camila tentou salvar Montanher. Relatos revelaram que ela chegou a segurar a mão do ator por duas vezes antes que ele fosse tragado pelo redemoinho. Infelizmente, diferente de sua personagem, na vida real Camila não conseguir impedir a morte de Montanher.
 
Triste pensar que Domingos Montagner não vai abraçar seus filhos, rever sua mulher, nem fará com eles a viagem a Cuba que tinha planejando. Não haverá novos personagens, mais novelas, nenhuma outra peça de teatro nem espetáculo de circo. Não tem para ele mais sonhos nem desafios. Sua vida terminou num prosaico mergulho no rio.
 
É óbvio que ninguém tem condições de compreender os desígnios de Deus, de uma “força superior”, do Cosmos ou do nome que se queira dar àquilo que transcende a lógica humana. Se há algum sentido em tragédias como a que se abateu sobre Domingos Montagner, evidentemente seus mecanismos são por demais complexos para a nossa tosca humanidade.
 
Por isso mesmo, não há melhor lição do que aquela que reside nas palavras de Horácio. Há que se aproveitar a vida, intensamente, sem pensar demasiadamente no futuro, tão imprevisível e incontrolável. Com amor, decência, ética, respeito, ousadia, coragem e, também, com um tantinho de loucura, viver com intensidade cada dia como se fosse o último é o que de melhor podemos fazer com o tempo que nos é concedido. Carpe diem! Antes que seja tarde demais.
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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