O garoto que venceu a morte

Nascido em Franca no final de fevereiro de 1981, portava essa falha no cromossomo xp21. Sua família descobriu a doença quando ele tinha seis anos. Foi forçado a abandonar a escola aos sete, deixou de andar aos dez.

21/08/2016 | Tempo de leitura: 4 min

“Ninguém comete erro maior do que não fazer nada porque só pode fazer um pouco” 
Edmund Burke, filósofo e político irlandês
 
 
Viver é um desafio permanente. Desde o mágico instante da concepção, somos constantemente submetidos a múltiplas provas e desafios. Há que se completar a gestação, sobreviver ao parto, vencer os primeiros meses, desenvolver-se na infância, crescer e transformar-se em adulto, envelhecer... Se tudo correr no melhor cenário possível, será uma vida longa, com momentos de muitas alegrias e outros de intensa tristeza, algumas conquistas e vários tombos, atitudes das quais nos orgulhamos e outras das quais nos arrependemos. 
 
Ainda mais absoluta, universal e sem qualquer exceção é a constatação de que vamos, todos, morrer. No instante em que nascemos, um cronômetro irrefreável é acionado. Ninguém sabe ao certo quando o inevitável “0h00m0s” chegará. Para mim ou para você que me lê, pode ser hoje, daqui a uma semana, dentro de uma década, em cinquenta anos ou depois disso. Tanto mistério ajuda a tornar os desafios de nossas existências mais suportáveis. Sempre carregamos conosco a perspectiva de que haverá tempo para corrigir um erro, reparar uma injustiça, fazer melhor alguma coisa de cujo resultado não gostamos, realizar um sonho, dar a volta por cima. Mas este, infelizmente, é um privilégio que nem todo mundo tem.
 
Para um em cada três mil bebês do sexo masculino que nascem neste mundo, o cronômetro vem diferente. Vítimas da Síndrome de Duchenne, nascem com um limitador ajustado para um tempo de vida curto. Uma mínima falha no cromossomo xp21, uma maldita herança genética, provoca uma distrofia muscular progressiva que faz com que os afetados dificilmente rompam a barreira dos 20 anos de idade. Exceções são raras, não importa o avanço dos recursos médicos a que o paciente tenha acesso, o tamanho de sua conta bancária ou mesmo o amor e carinho de amigos e familiares. Atenção e cuidados garantem uma melhor qualidade de vida, mas não são suficientes para estendê-la por muito tempo.
 
A síndrome de Duchenne é invisível nos primeiros anos. O bebê, ainda que portador da tal falha cromossômica, é aparentemente normal. Desenvolve-se sem maiores dificuldades, começa a engatinhar, aprende a andar e a falar. É só depois dos três anos que os pais percebem que tem alguma coisa errada. Os tombos são excessivos. Levantar-se fica progressivamente mais difícil. Via de regra, entre os 8 e os 12 anos, a locomoção se torna impossível. Pouco depois, os pulmões começam a falhar. Por volta de 18 anos, o coração, o grande músculo que sustenta a vida, é atingido. Por volta dos 20 anos, a maior parte dos pacientes morre.
 
Fabrício Rodrigues, nascido em Franca no final de fevereiro de 1981, portava essa falha no cromossomo xp21. Sua família descobriu a doença quando ele tinha seis anos. Foi forçado a abandonar a escola aos sete, deixou de andar aos dez. Com 13 anos, seus braços perderam a força. Depois, foi o sistema respiratório que fraquejou, o que o condenou a viver atracado a uma máquina de “Bibap”, que ajuda na ventilação dos pulmões. Manter-se vivo, nestas condições, já seria um desafio grande o suficiente para qualquer um. Resignar-se à autopiedade, ao conforto possível do lar, a uma certa revolta diante do destino, seria compreensível. Não para Fabrício.
 
Desde sempre, encontrou forças, sabe-se lá onde, para desafiar o destino. Se não tinha mais como frequentar a escola, daria jeito de estudar por conta própria. Aprendeu a ler e escrever em casa. Em algum ponto decidiu também que, se seu tempo era curto, o melhor era acelerar os projetos, minimizar as dificuldades e tratar de fazer o impossível.
 
Mexendo apenas três dedos, escreveu três livros. À vida, O voo e Redesenhando meu mundo, publicados entre 2008 e 2014. “Sempre me senti em um mundo maior do que me cabia. Pensava que não suportaria”, vaticina em sua última obra. Certamente por isso lutou tanto por independência, ainda que relativa. Morou sem os pais, virou palestrante, foi sócio de empresa. Engajadíssimo, trabalhou ainda por uma associação que reunisse pais de portadores da síndrome de Duchenne. 
 
Numa entrevista concedida há alguns anos, revelou profunda maturidade ao responder sobre a quem dedicava o livro O voo. “(...) Àqueles que se sentem caminhando sem rumo, que se sentem como um pequeno barquinho em alto mar, em meio à escuridão da tempestade, sem bússola, sem sequer um pequeno farol ao longe. Àqueles que se perderam, que se veem entrelaçados entre tantos porquês, que se sentem sem forças para caminhar, digo que a vida tem um sentido, que existe uma trilha no meio da floresta”, ensinou.
 
Fabrício morreu na noite da última quarta-feira, 17 de agosto, na Santa Casa de Franca, onde estava internado desde o início do mês. Foi vítima das complicações esperadas para quem é portador da síndrome de Duchenne. Tinha 35 anos. Viveu 15 anos mais do que imaginavam médicos e especialistas. 
 
Não tenho a menor dúvida de que Fabrício conseguiu forjar sua própria trilha, por mais densa que tenha sido a floresta que a vida colocou em seu caminho. Além de enganar o destino por mais de uma década, foi ainda capaz de derrotar a própria morte. Afinal, se é fato que seu corpo pereceu, também é inequívoco que suas lições, impressas nos três livros que deixou, são indeléveis - e eternas.
 
Descanse em paz, Fabrício. Sua missão foi cumprida. E com louvor.
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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