Gazetilha: Simplesmente 'papai' para mim

Nas madrugadas em que o sono já tão raro, me pego 'conversando' com aquele homem que era Corrêa Neves.

14/08/2016 | Tempo de leitura: 5 min

“Quando um homem se dá conta de que seu pai talvez tenha razão, normalmente tem um filho que crê que está equivocado”
 
Charles Wadsworth, pianista americano
 
 
Ando meio nostálgico. Diante desta crise sem precedentes que assola o país, dos imensos desafios que se apresentam cotidianamente, da ausência de clareza com relação ao que virá amanhã, tenho pensado mais do que nunca no meu pai. Nas madrugadas em que o sono já tão raro para mim desaparece de vez, me pego “conversando” com aquele homem que era “Corrêa Neves” para tantos, “Zezinho” para os companheiros de espiritismo, “Zezé” para a família e, simplesmente, “papai” para mim. 
 
Me fazem muita falta sua voz grave que ecoava pelo apartamento quando gritava “Sôooooniaa”, exigindo a presença da mamãe ao seu lado para alguma “urgência” absurda, como preparar café com bolinho de chuva às 11 da noite. Sua insistência quando queria que alguém ligasse pela vigésima vez em meia hora para o porteiro perguntando se o Comércio ainda não tinha sido entregue numa manhã de domingo. Seu tom professoral quando se mostrava surpreso porque eu desconhecia o nome do presidente de Burkina Fasso ou de qualquer outro país, ainda que a nação em questão fosse absolutamente irrelevante no contexto da conversa. Seus olhos marejados quando ouvia música, especialmente se Nelson Gonçalves fosse o cantor. 
 
Nascido numa família pobre de Itirapuã, crescera caminhando 14 km por dia para ir à escola. Foi para São Paulo sozinho, ainda adolescente. Virou jornalista, trabalhou nos maiores veículos do país, participou de grandes coberturas, escreveu sobre muita coisa. Migrou para a política, ocupou uma secretaria de Estado. Conheceu governadores, presidentes, reis. Perdeu tudo. Voltou para Franca, foi eleito vice-prefeito, desentendeu-se com os aliados. Caiu outra vez. Arriscou o pouco que restava. Tomou um empréstimo, comprou o Comércio e, aos 45 anos, recomeçou do zero. Deu tempo de construir muita coisa e, mais importante, de se realizar definitivamente. “Nunca fui tão feliz como aqui”, gostava de repetir.
 
Tantos altos e baixos, vitórias e derrotas proporcionavam ao meu pai uma perspectiva diferente para lidar com os desafios que a vida impõe. Nada o amedrontava. Para mim, adolescente em meados dos anos 80, a história era completamente diferente. Multiplicavam-se naquele período episódios tenebrosos de ameaças e ataques prá lá de agressivos ao jornal e, especialmente, a meu pai. 
 
Uma parcela da elite conservadora, que não admitia que um jornal deve publicar os fatos, não importa o sobrenome dos envolvidos, reagia sempre com violência quando seus interesses - ou protegidos - se viam atingidos. De insinuações torpes de que papai deveria ser submetido a um exame de sanidade mental aos muitos boatos mentirosos sobre a origem de seu patrimônio, sobravam petardos covardes. Aquilo me assustava. Papai dava de ombros. “Isso é bobagem, meu filho. Difícil mesmo foi quando enfrentei...”, costumava dizer, emendando uma outra história, do seu passado, que julgava realmente desafiadora.
 
Um dos episódios que mais me impressionou pela forma serena - e um tanto sarcástica - com a qual papai lidou com o problema tem a ver com a dantesca cassação de seu título de “cidadão francano” pela Câmara Municipal de Franca. Era a primeira metade dos anos 80. Na época, o Franca Basquete estava vinculado, do ponto de vista legal, à Associação Atlética Francana. Papai, presidente da Francana, e o professor Pedroca, ídolo do basquete, se desentenderam por uma série de razões. Houve troca de farpas públicas e, na sequência, com os ânimos exaltados, os dois senhores de mais de 50 anos trocaram socos e pontapés. Acabaram, ambos, machucados. A situação, ridícula por si, deveria ter se encerrado ali. Mas, como um dos envolvidos era meu pai, viria chumbo grosso na sequência.
 
Gente que não gostava dele nem do jornal viu no episódio uma oportunidade para tentar humilhá-lo. Articularam apoios na Câmara de Vereadores que, por mais inacreditável que possa parecer, se meteu na briga. E decidiu, em “desagravo” ao professor Pedroca, cassar o título de cidadão francano que havia concedido anos antes ao meu pai, como se nada que já tivesse feito por Franca, ao longo de décadas, tivesse valor.
 
Imaginei que ele fosse ficar chateado. Quando perguntei para ele o que pensava daquilo, recebi a resposta de sempre. “Bobagem, meu filho. Tenho outros 22 títulos de cidadão, inclusive da Capital. Nem por isso, me sinto mais paulistano do que francano. Não são os vereadores que definem a relação que temos com a cidade. Não dê bola para isso”, sentenciou. “O que fizeram foi para nos atingir. Não vão conseguir”. Aborrecimento mesmo, ele só tinha por ter se envolvido na briga. Achava que o exemplo era péssimo.
 
O caso foi tão absurdo e despropositado que, meses depois, a Câmara de Franca tentou voltar atrás e cancelar a destituição do título. Novamente, papai seria “cidadão francano”. Comunicado, enviou aos vereadores uma versão mais ácida da resposta que já havia dado a mim. E rejeitou a “honraria”. Foi uma grande lição. 
 
Hoje vou almoçar com meus filhos. Gostaria muito que papai estivesse aqui conosco. Queria que ele pudesse contemplar a linda mulher em que a sua neta se transformou. Ficaria certamente emocionado com o João, tão parecido em tudo conosco. Tenho certeza de que adoraria minha mulher, Milena, com quem conversaria sobre tantas coisas, especialmente, cavalos, paixão de ambos. E, na hora do cafezinho, quando dividisse com ele minhas inquietações quanto ao futuro, ouviria sua voz grave me tranquilizar. “Bobagem, meu filho”. Saudades imensas, papai.
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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