A morte de Ítalo

Ítalo, na companhia de um 'comparsa' de 11 anos, havia decidido invadir e assaltar um condomínio.

05/06/2016 | Tempo de leitura: 5 min

“O que se faz agora com as crianças é o que elas farão depois com a sociedade”
 
Karl Mannheilm, sociólogo húngaro

 
Nestes meus mais de 20 anos de jornalismo, vi muita coisa. São tantas experiências acumuladas que, hoje em dia, é difícil algo que, de fato, me surpreenda. Muita coisa que registro ou comento me entristece, revolta, indigna, enoja, decepciona... Mas surpresas, do ponto de vista daquilo que choca e assusta pelo ineditismo e dramaticidade, são raras.
 
A morte de Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, de apenas 10 anos, foi um destes trágicos eventos para os quais nenhuma experiência acumulada me preparou. Como entender ou aceitar que um menino que tem apenas quatro anos a mais do que o meu caçula, e que como ele deveria carregar consigo todos os sonhos do mundo, pode ter se envolvido numa troca de tiros com a polícia e acabar morto ao volante de um carro em fuga?
 
Admito que demorei a assimilar os fatos. Quanto mais lia e me aprofundava, mais absurdo e inverossímil tudo me parecia. Ítalo, na companhia de um “comparsa” de 11 anos, havia decidido invadir e assaltar, na tarde de quinta-feira, um condomínio da região do Morumbi, na capital. Pularam o muro e, dentro do prédio, percorreram vários andares em busca de algum apartamento cujo morador tivesse deixado a porta destrancada. Durante o périplo, se encontraram com uma moradora, com quem conversaram amenidades. Os garotos provavelmente perceberam que seriam flagrados e resolveram fugir. Encontraram no estacionamento um carro com vidro aberto e chave no contato. Não tiveram dúvidas. Ítalo, com seus 1,55 metros de altura, assumiu a direção do veículo, um Daihatsu 1998. O menino conseguiu sair com o carro do prédio, mas se atrapalhou com as marchas. Primeiro, bateu na traseira de um ônibus. Conseguiu retomar o controle do veículo e avançou de novo. 
 
Nesta altura, policiais militares que faziam patrulhamento de moto na região passaram a perseguir o Daihatsu. Deram ordem para que o carro encostasse, mas Ítalo não apenas ignorou, como ainda fez dois disparos na direção dos PMs com o revólver calibre 38 que carregava. Descontrolado, o menino bateu de novo, desta vez num caminhão. Acabou cercado. Parado, Ítalo fez mais um disparo contra os PMs que, então, reagiram. Os policiais alegaram que, como os vidros do Daihatsu eram insufilmados, não conseguiram perceber que era uma criança ao volante. Duvido que qualquer um imaginaria isso. Ítalo foi atingido com um tiro no olho esquerdo e morreu na hora. Seu companheiro, escondido no banco de trás, escapou ileso.
 
A imagem de Ítalo caído no banco do motorista, de chinelos e bermuda, é muito triste – por mais que se saiba que ele tentou roubar, que dirigiu feito louco e que atirou contra os policiais, Ítalo era antes de tudo uma criança. O menino que o acompanhava e confirmou a sequência dos acontecimentos, idem. Ambos, tão novos, já haviam participado juntos de outras tentativas de furto, tinham sido detidos, mas  com menos de 12 anos nem mesmo à Fundação Casa puderam ser encaminhados. 
 
É impossível não se perguntar como foi possível chegar a um desfecho desses. E, outra vez, quanto mais se mergulha na história, mais sombrio tudo parece. O pai de Ítalo é um vagabundo. Está na cadeia, onde cumpre pena de 18 anos por tráfico de drogas, falsidade ideológica e furto. A mãe, que se apresentou como doméstica, também saiu há pouco da prisão, onde estava acusada de tráfico de drogas e furto. “Revoltada” no sepultamento do filho e, mais ainda, diante das câmeras, Cíntia Francelino, 29 anos, distribuiu impropérios e acusações. Mas boa mãe não era. 
 
Nas primeiras entrevistas, Cintia não soube dizer nem mesmo onde o filho morava. Primeiro, disse que era com a avó. Depois, com a tia. Na prática, nem com uma nem com outra. Ítalo alternava temporadas na casa da avó e da tia com períodos na rua. Chegou a ser encaminhado pelo Conselho Tutelar a abrigos de menores. Fugiu três vezes. Além dos dois registros policiais por tentativa de furto junto com seu amigo, Ítalo tinha outros dois BOs (boletins de ocorrências) por crimes semelhantes.
 
Não faço parte daqueles que acreditam que todo bandido é uma vítima. Também não acredito que jovens de 16 anos não possam ser responsabilizados por seus crimes. Ao longo dos anos, tenho defendido punições severas para marginais, o que, para mim, inclui menores de idade. Mas o caso de Ítalo é completamente diferente. Não se trata de um jovem ou de alguém precoce no mundo do crime - Ítalo era apenas uma criança. Armada e perigosa, mas, ainda assim, uma criança.
 
A morte de Ítalo é o fracasso de todos nós enquanto sociedade. Não conseguimos impor limites aos seus pais e muito menos educá-los. Não conseguimos salvar o menino de sua própria família. Não conseguimos agir quando ele deixou de ir à escola nem quando acabou encaminhado a abrigos. Foi um colapso total, cujo desfecho, horrível, foi a sua morte. A morte violenta de uma criança. E, provavelmente, um trauma permanente num policial que tentava cumprir seu dever. Do começo ao fim, está tudo errado. 
 
Impedir que dramas como o de Ítalo se repitam é tarefa árdua. Quanto mais demorarmos a entender o tamanho do problema e lutar contra isso, mais veremos tragédias semelhantes se repetirem. Do jeito que as coisas vão, daqui a pouco notícias de marginais de dez anos não serão mais surpresa. Nem para mim, nem para ninguém.
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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