Tradição indesejada

Franca surgiu como um pequeno pouso às margens do córrego dos Bagres. Era parada de descanso obrigatória para os bandeirantes que,

31/01/2016 | Tempo de leitura: 4 min

“O que o dinheiro faz por nós não 
compensa o que fazemos por ele”
 
Gustave Flaubert, escritor francês
 
 
Franca surgiu como um pequeno pouso às margens do córrego dos Bagres. Era parada de descanso obrigatória para os bandeirantes que, no início do século XVIII, percorriam, no lombo de cavalos e mulas, o trecho de São Paulo a Goiás em busca do tão sonhado ouro. O local onde cem pessoas moravam começou a ser conhecido como Belo Sertão do Capim Mimoso. Era o embrião de Franca.
 
A terra que tantos, como eu, amam e chamam de lar, se tornaria depois conhecida como um polo diamantário e também ganharia respeito no mundo, atrelado à região da Mogiana, como terra produtora de cafés de grande qualidade. Com o século XX viriam outras “láureas”, duas delas conferindo à cidade o status de “Capital”. Primeiro, do calçado masculino. Depois, do basquete. A qualidade e o volume de produção do primeiro e as vitórias do segundo justificavam plenamente a deferência. O nome de Franca projetou-se no mundo pela força do seu calçado, embalado também pelos títulos do basquete.
 
Quando Franca já era reconhecida como polo diamantário, terra produtora de um dos melhores cafés do mundo, Capital do Calçado e do Basquete, a cidade ganhou prestígio também por ser um centro de referência no ensino das ciências jurídicas, com três faculdades - duas delas, entre as melhores do país - oferecendo cursos de graduação e pós-graduação na área. 
 
Mais recentemente, com o crescimento vertiginoso do Magazine Luiza - hoje uma das 100 maiores empresas do país, com suas mais de 750 lojas espalhadas por 17 estados e faturamento que se mede na casa dos bilhões de reais - Franca ganhou projeção por ser a cidade onde a rede foi fundada e na qual mantém raízes profundas.
 
Por tudo isso, tem sido bastante desagradável constatar que, apesar da absoluta maioria de pessoas honestas e decentes que formam Franca, a cidade tem sido cada vez mais vista como uma espécie de “Meca da Falsificação”.
 
Obviamente, numa cidade com tantas fábricas, a falsificação de tênis e sapatos é a mais recorrente. Somente entre 2010 e 2012, mais de 2 mil pares falsos de marcas como Puma, Nike e Adidas foram apreendidos e destruídos por determinação judicial. Na mesma leva, viraram cinzas centenas de bolsas, tão verdadeiras quanto uma nota de R$ 3, de marcas como Dolce & Gabbana, Louis Vuitton e Michael Kors. Isso, para citar apenas duas apreensões. 
 
Há também bebida falsificada. Difícil encontrar um frequentador da noite francana que nunca tenha sido vitima de uma ressaca monumental por conta de uma caipirinha maldita - normalmente, “batizada”. Uma apreensão feita em março de 2015 mostrou que o esquema de falsificação de bebidas em Franca era industrial, com direito a destilaria clandestina. Estavam ali armazenadas 100 mil garrafas e 6 mil caixas de cachaça, conhaque e - pasmem - até catuaba. O pior foi ouvir o “dono” dizer que era tudo artesanal, para “consumo próprio”. Segundo a polícia, o real destino da bebida eram bares e festas da cidade.
 
Agrotóxico, então, nem se fala. Uma operação conjunta do Gaeco (Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado) e da Polícia Civil desbaratou em 2014 uma sofisticada quadrilha baseada em Franca que produzia, embalava e distribuía para o Brasil inteiro toneladas de agrotóxicos de marcas de prestígio, como Bayer. Tudo falso. O esquema era tão grande que, junto com a quadrilha, foram apreendidos carros, motos, propriedades. Avaliações indicam que o grupo movimentava milhões de reais por mês.
 
Impossível deixar de mencionar a quadrilha de falsos médicos que infestou a rede pública da cidade, sob os auspícios do governo municipal que, mesmo alertado sobre o que acontecia, nada fez. Até onde se conseguiu contar, nove falsos médicos clinicaram durante meses por aqui. Não apenas atenderam milhares de pacientes sem poder, como, para piorar, levaram milhões de reais dos cofres públicos. 
 
Ainda na prefeitura, há o secretário de Meio Ambiente, Ismar Tavares, acusado pelo Ministério Público de falsificar um documento para justificar a cessão de uma casa da prefeitura para que um servidor morasse de graça. Em troca do “favor”, o servidor teria feito silêncio sobre irregularidades cometidas por Tavares. O caso foi denunciado à Justiça. 
 
No meio de tanta imundície, houve ainda quem tivesse estômago para falsificar até Bíblia. Em 2013, um grupo de golpistas foi denunciado por vender de porta em porta falsas Bíblias do Divino Pai Eterno. Os sujeitos eram tão caras-de-pau que ainda cobravam muito mais caro. Enquanto uma original custava R$ 39,90, os golpistas pediam R$ 250 pela versão falsificada.
 
Nesta semana, mais um caso grave. Descobriu-se que funcionava em Franca uma fábrica de xampus da L’Oréal, multinacional francesa que produz algumas das marcas mais conhecidas do mundo. Tudo, obviamente, falso. Chega a ser hilária a entrevista do acusado nas páginas do Comércio e do portal GCN. De forma deslavada, o sujeito admitiu que falsificou, que se considerava um “terceirizado”, e ainda garante que o seu produto “é melhor” que o original. Só rindo.
 
Xampus, bebidas, bolsas, calçados, agrotóxicos, documentos públicos, médicos, Bíblias... É uma lista tão grande quanto diversa e, na mesma medida, vexatória. Que a Justiça seja feita, ainda que tardiamente, que os culpados sejam tirados de circulação e que suas práticas sejam interrompidas. Tudo que não merecemos é que essa nova “especialização” se transforme em “tradição”. Aqui no Belo Sertão do Capim Mimoso, não. 
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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