O falcão peregrino

Viajar, para mim, é uma das melhores coisas do mundo. Estar num lugar diferente, exposto a uma cultura diversa, em meio a uma geografia

10/01/2016 | Tempo de leitura: 5 min

“Nada assombra quando tudo assombra: é a idade das crianças”
 
Antoine Rivarol, escritor francês
 
 
Viajar, para mim, é uma das melhores coisas do mundo. Estar num lugar diferente, exposto a uma cultura diversa, em meio a uma geografia nada familiar, é prazer puro. Enveredar por caminhos nunca antes percorridos, ter a chance de conversar com gente forjada em costumes distintos e com hábitos tão diferentes dos nossos, é muito estimulante. Experimentar pratos improváveis, feitos com ingredientes surpreendentes, é uma grande curtição. Como em casa todos também gostam muito de viajar, a “aventura” começa bem antes do embarque, quando tudo ainda é só a excitação de um plano em desenvolvimento - todos ajudam com sugestões do que gostariam de fazer, com os programas que acham imperdíveis... 
 
Atravessar a cordilheira dos Andes, de carro, entre Santiago, no Chile, e Mendoza, na Argentina, era um desses projetos que demoraram anos para serem concretizados. Apesar de já ter estado em Mendoza, há quase 15 anos, nunca tinha visitado o Chile e, muito menos, cruzado os Andes. Sonhava percorrer esta estrada, tida por muitos como uma das mais bonitas do mundo. Você sai de Santiago e sobe serpenteando as montanhas por uma sequencia de trinta curvas de arrepiar, conhecidas como Las Caracoles, até mais de 3 mil metros de altura. Ali, no túnel Cristo Redentor, onde o ar é tão rarefeito que facilmente provoca fadiga, cruza a fronteira e desce do outro lado, já em território argentino, aos pés do Aconcágua - a mais alta montanha das Américas, com seus imponentes 6.960 metros acima do nível do mar e cume de “neve eterna”.
 
Apesar da distância relativamente curta, o trecho de 363 km exige sete horas - ou mais - para ser vencido. “Culpa” da estrada, sinuosa e com pouquíssimos pontos de ultrapassagem, e dos controles de fronteira, desnecessariamente complexos e burocráticos, ainda mais se você estiver conduzindo um carro alugado. Ainda assim, a beleza do trajeto faz a travessia de carro valer muito a pena. É impossível se cansar, tantos e tão magníficos são os cenários. Foi neste caminho que João e sua avó começaram uma conversa que renderia, dias depois, um desses momentos que a gente guarda para a vida toda.
 
Mamãe avistou um pássaro que imaginou ser um condor ou gavião. Foi corrigida pelo João. “É um falcão peregrino”, vovó. Passaram então a debater que características teria aquele pássaro. As informações foram se somando. O falcão peregrino era uma ave de rapina. Dava mergulhos supervelozes em direção a sua presa. Se alimentava basicamente de outros pássaros, especialmente pombos. Essa parte toda é verdade. Mas ali, no meio daquele longo trecho, houve espaço também para fantasia. E foi assim que minha mulher disse ao nosso filho que o falcão também conseguia pegar crianças malcomportadas. Completou reforçando que eram eventos raríssimos, mas que era melhor se comportar. João fitava através da janela do carro os falcões em seus impressionantes rasantes de mais de 300 km/h.
 
Quatro dias depois, já estabelecidos em Mendoza, partimos para o que seria nossa segunda degustação numa bodega, desta vez, a Domínio del Plata, de Susana Balbo, uma das maiores especialistas em vinho do mundo. Por uma quantia por pessoa que, no Brasil, não daria nem para comer porção com cerveja num boteco, uma degustação dessas inclui pelo menos cinco vinhos diferentes produzidos na vinícola (um espumante, um branco, um rosé, dois tintos) e muitas comidinhas. Os lugares são impressionantes - e a bodega de Susana Balbo, com parreirais que fazem divisa com gramados por onde se espalham espreguiçadeiras e gazebos cercados de flores, especialmente roseiras, é deslumbrante.
 
Foi ali que João, depois de ter almoçado, resolveu explorar o imenso jardim atrás de esquilos e castores. De nada adiantava explicar que Tico e Teco não viviam ali. Ele queria porque queria encontrá-los. E saía, armado com sua imaginação, em busca dos castores. Foi a mesma imaginação que o transformaria em protagonista de uma cena hilária - para a gente - e aterrorizante - para meu caçula. Enquanto “caçava”, João começou a ser seguido por uma pomba ou coisa que o valha. Ao olhar para o gramado e perceber a imagem do pássaro refletida, imaginou que se tratava de um falcão peregrino. E, como ele havia feito umas pequenas malcriações, deve ter pensado que estava incluído entre aquelas raras crianças que seriam “capturadas”. Pronto. João surtou.
 
Não cronometrei o tempo, mas meu filho deve ter se aproximado do índice olímpico para os 100m rasos. Correu desesperado rumo à avó, chorando, com receio de que houvera se transformado em presa. Não houve argumento que revertesse a sensação. Tivemos que abreviar nossa experiência na Domínio del Plata, segurar o riso para não gerar traumas adicionais e rumar para Mendoza em busca de um “sabre de luz”.
 
Fã de Star Wars, João só se acalmou quando colocou na “bainha” a arma dos jedis. “Agora estou ponto para poteger a gente, papai”. E assim, nos dias que se seguiram pelos lindos caminhos de Mendoza, havia sempre uma espécie de mestre Yoda na nossa frente, fazendo pose de herói e afastando qualquer pássaro que ousasse cruzar o nosso caminho com sua inseparável espada. O falcão peregrino não foi visto no trecho de retorno percorrido pela mesma estrada. Nem por nós, nem pela imaginação do João. “É que eles estão com medo, papai”. Tá certo, meu filho. Que a força - e os sonhos - esteja sempre com você
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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