Um crime sem castigo

Sei muito pouco sobre Marcos Molina. Não posso dizer se era honesto ou desonesto, se trabalhava muito ou pouco, se bebia ou era abstêmio.

20/09/2015 | Tempo de leitura: 4 min

“Sejam as leis claras, uniformes e precisas, porque interpretá-las é o mesmo, quase sempre, que corrompê-las”
 
Voltaire, filósofo francês
 
 
Sei muito pouco sobre Marcos Molina. Não posso dizer se era honesto ou desonesto, se trabalhava muito ou pouco, se bebia ou era abstêmio. Desconheço qual sua comida favorita ou para que time torcia. Não tenho a menor ideia de onde estudou, se gostava de ler, se tinha algum hobby. Também sequer imagino como era a casa onde morava. Sei apenas que era serralheiro, que era casado e que tinha dois filhos. Sei também que sua vida terminou numa terça-feira, 29 de julho de 2014, de forma brutal e absurda. Passava um pouco das 9h e Marcos tinha acabado de comprar um spray automotivo numa loja de tintas. Estava dentro de um caminhãozinho F-4000 quando foi abordado por seu algoz. Não teve chance de se defender. Atingido por três disparos a queima-roupa, morreu antes mesmo de chegar na Santa Casa.
 
Não foi preciso um sofisticado trabalho investigativo nem grande espera para que o crime fosse esclarecido. Convenientes 72 horas depois de matar - e de se livrar da prisão em flagrante - o comerciante Cláudio da Silva, 38, se apresentou à polícia. Assumiu a autoria dos disparos, sem titubear. Disse que Marcos Molina “assediava” sua mulher e que resolvera reagir à “provocação”. Mesmo réu confesso, saiu tão livre quanto entrou, sem quaisquer constrangimentos adicionais, beneficiado pela frouxíssima legislação brasileira.
 
Cláudio da Silva foi indiciado por homicídio duplamente qualificado (motivo fútil e impossibilidade de defesa por parte da vítima). O inquérito policial foi concluído sem sobressaltos. O Ministério Público fez a denúncia, mas mais branda - o promotor Odilon Comodaro considerou que Cláudio cometeu homicídio “privilegiado”, cujas penas são menos severas, por avaliar que as agravantes apontadas pela polícia não ficaram comprovadas e, além disso, por acatar a tese de que o assassino agiu “transtornado” pelas circunstâncias.
 
O caso era tão óbvio, os fatos tão claros, as responsabilidades tão evidentes que nem mesmo o advogado de Cláudio da Silva discordava de uma punição. Em seus argumentos, Rui Engrácia Garcia, defensor do assassino, fez coro ao MP. Queria apenas evitar os agravantes e, assim, pediu também que seu cliente fosse condenado por homicídio privilegiado. “Ele cometeu o crime sob estado de forte emoção e perturbação. É mais que justo que ele cumpra a pena, mas que seja reconhecido o homicídio privilegiado”, argumentou. Na melhor das hipóteses para o assassino, projetava-se uma sentença, com as reduções aplicáveis, de quatro anos em regime aberto. Se o cenário não fosse tão positivo, passaria alguns meses - no máximo, um par de anos - atrás das grades. Pouco, mas ainda assim, uma punição.
 
Por tudo isso, na manhã desta última quinta-feira, ninguém que acompanhava o julgamento de Cláudio da Silva arriscaria sequer imaginar o absurdo que estava por vir. Afinal, diante de um réu confesso que admite ter matado alguém a queima-roupa e da concordância da acusação e da defesa com as teses apresentadas, o que mais poderiam decidir os sete jurados reunidos se não o mesmo? Que tipo de divergências aqueles cinco homens e duas mulheres poderiam encontrar?
 
Ninguém sabe, mas encontraram. Bastaram 15 minutos de deliberações na “sala secreta” para que os jurados resolvessem absolver Cláudio da Silva. A decisão foi por margem estreita - 4 votos a 3 - mas, na prática, pouco importa. Decisão apertada ou não, o fato concreto é que o homem que confessou ter matado um outro a tiros acabou sem qualquer punição. Cláudio da Silva não passou um único dia preso como consequência de seus atos nem será minimamente responsabilizado pela vida que tirou. “(A absolvição) foi justa”, comemorou o assassino.
 
Diferente do que diz, não foi uma decisão justa. Foi qualquer coisa, menos justa. Marcos Molina não matou nem estuprou ninguém. Não roubou nem coagiu quem quer que seja a coisa alguma. Não se insinuou para uma criança indefesa. Se é que houve algum erro, já que o próprio “acusado” obviamente não pode apresentar sua versão por ter sido morto, foi um galanteio fora de propósito, uma cantada inoportuna, um comentário infeliz. Nada além disso. E por isso, Marcos pagou com sua vida. Quem lhe tirou a vida, não pagou nada.
 
É lamentável constatar que, no Brasil de hoje, quando crescem os terríveis casos de “justiciamentos” - praticados por gente que, carente de respostas adequadas por parte das autoridades constituídas, abandona os escrúpulos e parte para “fazer justiça” com as próprias mãos - uma chance de se aplicar a lei de forma correta tenha sido tão desperdiçada. Representada pelo júri, era hora e lugar da comunidade francana fazer justiça do jeito certo. Não fez.
 
Assombroso também é imaginar o tipo de mensagem que uma decisão dessas transmite. É justificável matar alguém porque fez um galanteio ou, na pior das hipótese, por que foi grosseiro e desrespeitoso? Quem mata não deve ser punido, ainda que tenha agido de forma cruel e sem dar chance de defesa? A vida de qualquer um vale tão pouco assim? Do que se extrai da terrivelmente equivocada decisão do júri, a resposta a todas essas perguntas é um tenebroso “sim”. Pensar num exemplo pior do que esse é simplesmente impossível. O júri é sempre soberano. Mas às vezes, como nesta semana, é também medonho. E, na mesma medida, vergonhoso.
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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