“Papai, não morra”

Imagine por um instante que você seja um pai de família de 40 e poucos anos que vive com sua mulher, de 35, e dois filhos pequenos - um de cinco

06/09/2015 | Tempo de leitura: 5 min

“O maior pecado contra nossos semelhantes não é odiá-los, mas ser indiferente a eles: essa é a essência da desumanidade”
 
George Bernard Shaw, dramaturgo irlandês
 
 
Imagine por um instante que você seja um pai de família de 40 e poucos anos que vive com sua mulher, de 35, e dois filhos pequenos - um de cinco e outro de três anos - em Kobane, na fronteira entre Síria e Turquia. O tempo de juventude na capital, Damasco, onde aprendeu o ofício de barbeiro, há muito ficou para trás. Você e sua família vivem no inferno. 
 
Dos 50 mil habitantes que até cinco atrás faziam de Kobane o seu lar, sobraram apenas 12 mil. Quem não fugiu, foi dizimado. Primeiro, pela guerra civil, deflagrada em 2011 e que dividiu a Síria entre os que apoiam o governo do ditador Bashr Assad e aqueles que querem mais liberdade e democracia. Estima-se que o saldo já chegue a 300 mil vítimas.
 
Depois, veio o Estado Islâmico, grupo de fanáticos religiosos que quer impor ao mundo sua crença, começando por um “califado” na região. Eles sustentam que seu Deus ditou cada uma das palavras que compõem o livro sagrado da religião, o Alcorão, e que todos estão obrigados a segui-las. Não há espaço para diálogo. Quem não adora o mesmo Deus nem aceita seguir todas as suas regras, deve ser morto. Sumariamente.
 
Muitos foram decapitados. A outros, colocaram numa jaula e atearam fogo. A alguns, dentro de uma gaiola, foram submersos até se afogar. Houve vários crucificados. Teve gente executada com um tiro na nuca disparado por crianças que gritavam “Alá” enquanto puxavam o gatilho. E, ainda, pessoas a quem ataram bombas e detonaram sem piedade. Tais abominações são registradas em vídeo pelo próprio Estado Islâmico, que espalha mundo afora seu terror. 
 
Desesperado, você foge com sua família para a Turquia, mas o problema é que muita gente teve a mesma ideia. As condições de vida são precárias, não há perspectiva de futuro e, para deixar tudo mais sinistro, os fanáticos religiosos estão por perto. Vocês então voltam para Kobane mas, ali, é impossível permanecer. Sem alternativa, resolvem fugir para a Europa. 
 
Os quatro cruzam 1.400 km até o balneário de Bodrum, na Turquia. Dali, é preciso vencer quatro quilômetros no mar para chegar até a ilha grega de Kós, já na Europa. O transporte, ilegal e precário, custa caro. Os contrabandistas exigem R$ 16 mil para levar todos. O dinheiro é enviado por uma tia que mora no Canadá, lugar onde você sonha viver. 
 
E é assim que, numa terça-feira, você e sua família acabam parte de um grupo de 17 pessoas que entram num bote inflável para tentar alcançar a Europa. Imagine o grau de desespero em que você se encontra para assumir um risco deste tamanho, ainda mais se considerado que sua mulher e as crianças não sabem nadar - e que, obviamente, não há coletes salva-vidas.
 
Logo depois de iniciada a travessia, o mar revolto deixa todo mundo nervoso. Depois de uma hora à deriva, as pessoas, em pânico, se levantam. Não demora muito para que o bote vire. Você nada na direção dos seus filhos e consegue segurar um, depois o outro, por fim a sua mulher. Mas as fortes ondas tornam impossível o esforço de manter os três boiando. Um a um, eles escapam das suas mãos para a morte. Primeiro, a sua mulher. Depois, o primogênito. Por último, o caçula Aylan que, antes de afundar, grita: “Papai, não morra”. O corpinho dele é levado pela correnteza até o mesmo balneário de onde havia partido. Uma fotógrafa capta o tristíssimo instante.
 
A imagem do menino de bruços nas areias de Bodrum, na Turquia - tão bonito, vestido com tanto esmero pela mãe, tão desprotegido - chocou o mundo. Bilhões de pessoas que pareciam fingir que as atrocidades cometidas pelo Estado Islâmico não existiam, que ignoravam o drama dos refugiados, ou que rechaçavam uma ação militar para intervir neste absurdo porque inocentemente acreditavam que sempre se pode “conversar”, foram expostas à brutal realidade. 
 
A tragédia de Aylan Kurdi, o garoto da foto; de seu irmão Galip; da mãe de ambos, Rihan; e do pai, Abdullah Kurdi, o único a sobreviver, não é minha - e nem sua. Poderia ser. Só neste ano, 400 mil pessoas fugiram do Oriente Médio rumo a países como Grécia, Inglaterra, Alemanha, Itália e França na desesperada tentativa de sobreviver. São pessoas como nós, cujos sonhos, aspirações e projetos foram interrompidos pela mais baixa intolerância, pela forma mais desprezível de conflito religioso. 
 
A indiferença do mundo é o combustível que alimenta a besta do Estado Islâmico. O “politicamente correto”, que aposta no “diálogo” com quem quer exterminar boa parte da humanidade, sua maior teia de proteção. Basta. A morte de Aylan Kurdi não pode ter sido em vão. Que a tragédia deste menino e de sua família sirva para lembrar aos líderes das principais nações do mundo que, às vezes, operações militares em larga escala não são uma opção. São a única opção, conforme ensinou a Segunda Guerra Mundial. 
 
Chega de esperar sentado. O Estado Islâmico não esconde que busca uma bomba atômica. Se nada for feito, eles conseguirão, para matar gente na escala dos milhões. É preciso agir imediatamente, em memória de Aylan e de tantos outros que pereceram vítimas deste terror. E, também, em favor de um mundo um pouco menos intolerante - e sombrio - para todos nós.
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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