Pais & filhos

Quando criança, tinha dois grandes temores. Um deles era o escuro. A simples hipótese de ficar fechado no breu era suficiente para me apavorar.

09/08/2015 | Tempo de leitura: 4 min

‘Para compreender os pais é preciso ter filhos’
Sofocleto, escritor peruano
 
 
Quando criança, tinha dois grandes temores. Um deles era o escuro. A simples hipótese de ficar fechado no breu era suficiente para me apavorar. Não que fosse uma criança medrosa. Apenas a escuridão me incomodava, profundamente. Bastava apagar as luzes para que todos os tipos de ‘monstros’ infantis, como o arremedo de jacaré feioso Cuca, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, ou Ultraseven, do seriado japonês de mesmo nome, aprisionassem minha alma. Era terrível. De luz acesa, era capaz de ficar horas sozinho, entretido com minhas leituras, sem receio de nada. Mas se a luz se apagasse...
 
O segundo temor era relacionado a meu pai. Tinha muito receio de que ele morresse. Era uma ideia que me transtornava. Me lembro de, ainda muito criança, ‘conversar’ com Deus e pedir ajuda para que papai não morresse antes que eu ficasse adulto. Desenvolvi até uma projeção particular: nas minhas orações, fixava o ano 2000 como a data a partir da qual imaginava estar pronto para sobreviver sem meu pai. Teria então 26 anos e, na minha lógica, estaria então pronto para resistir à tristeza da partida dele. 
 
Se não tenho a menor ideia de onde surgiu meu temor infantil pelo escuro, o mesmo não posso dizer do medo da morte de meu pai. Certamente, o fato de papai ter idade para ser meu avô contribuiu muito para este receio. Vinte um anos mais velho que minha mãe, papai tinha 47 anos quando nasci. Enquanto meus amigos de infância tinham pais na casa dos trinta e poucos anos, o meu se aproximava dos 60 ao final da minha primeira década de existência. Nenhuma criança teme que sua mãe ou pai de vinte ou trinta anos está prestes a morrer. O mesmo não se aplica quando um deles se aproxima dos sessenta. 
 
Havia ainda um agravante. Por esta época, papai era para mim quase um santo. Não tinha problema que ele não resolvesse, não havia dúvida que ele não soubesse esclarecer, não existia nada que ele temesse. Além de amá-lo, também o admirava profundamente. Perdê-lo simplesmente não era uma opção.
 
Papai partiu há dez anos, num 18 de agosto de 2005. Não sou prepotente a ponto de imaginar que Deus tenha atendido minhas súplicas, mas sou muito grato por ter podido conviver com ele até meus 31 anos. É óbvio que gostaria que ele continuasse conosco até hoje. Sinto falta de suas convicções, da intuição infalível, dos carinhos - e até, admito, das suas múltiplas implicâncias. Há questões que não consegui discutir com ele em vida e que ainda me inquietam, mas não há razão para revolta. Foram 77 anos de vida intensa. 
 
Quando papai morreu, sabia há tempos que nem de longe ele era santo. Era um homem, falível como qualquer outro, contraditório como todos somos, mas leal, honesto e correto como poucos conseguem ser. Fez-se sozinho na vida, caiu, levantou-se, caiu de novo, levantou-se mais uma vez... Por isso mesmo, segue para mim e para muitos que o conheceram tão admirável.
 
Papai foi também um avô dedicado. Era louco por Júlia, minha primogênita, que foi sua última interlocutora. Quando já não conversava com ninguém, ensimesmado pela hidrocefalia que o levaria à morte, foi com ela que ele bateu um longo papo. Se Júlia perguntasse alguma coisa, papai respondia, com surpreendente coerência e precisão. Para os demais, com exceção de minha mãe, sua grande paixão, quase sempre o silêncio era a única resposta.
 
O João, papai não teve a chance de conhecer. Se tivesse tido, arrisco dizer que teria dado um jeito de permanecer vivo. Como o avô, João adora conversar com as pessoas, ainda que as tenha conhecido há instantes. Extrovertido e, também como meu pai, fanático por esportes, é do tipo que aos cinco anos assiste a qualquer competição - de bicicleta na neve até campeonato de malha. 
 
Como a vida é recheada de ironias, João anda com medo de uns ‘monstros’- e também, de ficar longe do pai. Gruda em mim feito um carrapato, o que nem um pouco me desagrada. ‘Te amo infinito, papai’, repete. Assim como sua irmã mais velha, adora comer, mas é bem menos disciplinado do que ela para conter sua volúpia. Ambos são notívagos, maldição que herdaram de mim, e lutam para dormir como se o sono fosse um inimigo feroz. 
 
Neste domingo, vamos almoçar todos juntos, como fazemos com grande frequência. Não tenho a menor ideia da imagem que Júlia e João fazem de mim. Obviamente, minha filha mais velha sabe faz tempo que de santo não tenho nada. Espero que João chegue logo à mesma conclusão. Dos meus filhos, quero apenas que me amem. E que entendam que seu pai é um homem, falível e imperfeito como qualquer outro, mas que procura fazer o que é certo, justo, correto, e que luta por aquilo em que acredita.
 
Espero ainda viver para vê-los se tornarem adultos produtivos e honestos, leais com seus amigos e sem medo de enfrentar os desafios que a vida impõe. E um dia, quando eu não estiver mais por aqui, torço para que possam se lembrar de mim com o mesmo amor e saudade com que me lembro do meu pai.
 
Feliz Dia dos Pais! 
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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