O que nos move?

Quando era criança, adorava se uma oportunidade qualquer surgia e tinha a chance de percorrer o prédio do Comércio, tão escuro e frio quanto

05/07/2015 | Tempo de leitura: 5 min

‘Os jornais permitem que nos olhemos ao espelho, e temos de ter a coragem suficiente para olhar diretamente para as imagens refletidas’

Nelson Mandela, líder sul-africano
 
 
Quando era criança, adorava se uma oportunidade qualquer surgia e tinha a chance de percorrer o prédio do Comércio, tão escuro e frio quanto fascinante. Havia três escadas muito precárias, de madeira antiga, que rangiam a cada passada. 
 
Para mim, aquilo tudo era mágico.
 
Uma das escadas dava acesso à redação, que então era apenas uma salinha mínima com três mesas de madeira, uma janela sem vidro que dava vista para a gráfica, tudo com nível de conforto perto do zero. Mamãe ficava ali, instalada numa delas, de longe a mais organizada. Papai, a partir do meio da tarde, também, acomodado numa cadeira de madeira - personalidade curiosíssima, ele nunca usou a sala dele, que acabou transformada em depósito. Parte do dia ficava instalado no escritório, em frente a mesa da Dulce Xavier, então ‘auxiliar’. No resto, na redação. 
 
Na mesa restante revezavam-se o ‘sêo Nego’, espécie de repórter policial e faz-tudo; o Sidnei Ribeiro, editor e pau-para-toda-obra; e ainda o responsável por revisar os textos, em turnos alternados. Numa poltrona de madeira, os visitantes eram recebidos. Passaram por aquele espaço precário muitas pessoas importantes, o que inclui os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula, além de todos os governadores do Estado desde os anos 70.
 
A segunda escada levava para a sala de Sônia Menezes Pizzo, a colunista Patrícia, um ambiente alegre, apesar de muito confuso. Era o espaço mais claro do prédio, com janelas que se debruçavam sobre a Ouvidor Freire. Além da Patrícia, invariavelmente chegando ou saindo, estava sempre por ali a Maria Célia. Havia no ambiente um painel que me encantava, com fotos de artistas, na maior parte gente que a Patrícia havia entrevistado. 
 
A terceira escada dava acesso ao acervo, lugar onde eram mantidos os livros com a história do jornal. Um exemplar de cada edição, encadernados mês a mês, desde 1915. Não havia mesas ou cadeiras para facilitar a leitura, mesmo porque isso não era permitido a ninguém. Papai tinha medo que alguém, acidentalmente, destruísse uma página que fosse. Era um tesouro escondido - e bem preservado.
 
De vez em quando, eu conseguia subir sem que ninguém percebesse. Ficava ali, lendo aqueles jornais antigos, viajando no tempo em meio a milhares de páginas de registro histórico até ser ‘resgatado’, invariavelmente contra a minha vontade. 
 
Diante da edição de 30 de junho de 1915, me perguntava porque um comerciante chamado José de Mello tinha decidido começar um jornal em Franca. Por que o jornal era impresso nas tardes de quarta-feira? Quantos anos ele tinha quando saiu a primeira edição? Será que já era casado? Quanto havia custado a empreitada? Qual seria o tamanho da equipe? Qual a marca das prensas? Onde era vendido o jornal? O que tinha movido Mello,intimamente, na decisão de se aventurar? 
 
Nos anos seguintes, refiz as mesmas perguntas, com sutis variações, incontáveis vezes, tanto em relação a José de Mello quanto a seus sucessores: Vicente Paiva (1920-1922); Ricardo Pucci e Alberto Rodrigues Alves (1922-1955); Alfredo Costa, Márcio Bagueira Leal e Jorge Cheade (1955-1973). Inclusive meu pai, diretor-responsável a partir de 73.
 
Do ponto de vista empresarial, jornal é um mau negócio. Subtraídas as despesas das receitas, o saldo nunca é exatamente empolgante. Não faltam negócios muitíssimo menos arriscados e inúmeras vezes mais lucrativos. Além disso, a atividade exige muito, tanto do ponto de vista físico, já que os acontecimentos não param de se suceder, quanto emocional, pelos enfrentamentos inerentes à função. Editar um jornal é ser juiz de direito sem as prerrogativas do cargo. O responsável por uma publicação tem que tomar decisões tão difíceis quanto um magistrado, mas mais rapidamente. Em ambos os casos, cumprir bem seu papel significa, invariavelmente, contrariar interesses e desagradar muita gente. Mas, diferentes daqueles investidos na magistratura, editores de jornal não contam com função estável, rendimento garantido, muito menos imunidade para suas opiniões manifestas no exercício do ofício. Por isso mesmo, sempre retornava a mais inquietante das perguntas: o que motivava essas pessoas que publicaram o Comércio ao longo do tempo?
 
Muitos anos depois, ainda não encontrei uma resposta absoluta. Mas acredito, fortemente, que o desejo de publicar um jornal subsiste numa razão singela: simplesmente porque precisa ser feito. A cada geração, tem que haver alguém - quanto mais pessoas, melhor - disposto a reunir uma equipe que tenha como propósito fundamental noticiar os fatos tais quais ocorreram, ou o mais próximo disso que for possível apurar. Essa equipe não pode ter medo de cara feira, de desagradar alguém, de enfrentar o poder constituído. Muito menos, de contrariar interesses de quaisquer natureza, ainda que sejam de familiares, amigos ou das pessoas a quem se deve consideração e respeito. É uma missão nobre, mas que exige um grau de desprendimento brutal. Não é para qualquer um.
 
Há um século, grandes pessoas têm se sucedido nesta linda missão à frente do Comércio. Que nas próximas dez décadas não faltem outros tantos para fazer com que aquilo de importante que acontecer no mundo e que seja relevante para esta comunidade e região esteja organizado, hierarquizado e disponibilizado, de acordo com os mais elevados princípios éticos, para análise e reflexão do leitor. Quer seja no papel, quer seja numa outra plataforma, o fundamental é que o espírito do Comércio continue forte. Doa a quem doer, custe o que custar. Exatamente como tem sido, há cem anos.
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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