A paixão pela notícia, a ousadia no empreendimento e a coragem para defender ideias foram características marcantes do homem responsável por transformar o Comércio da Franca numa referência de respeito e credibilidade. Corrêa Neves dirigiu o jornal por 32 anos, entre março de 1973 e agosto de 2005, período em que fez apostas arriscadas, investiu na profissionalização e não deixou o veículo parar no tempo. A busca constante pela modernização, o prazer de ser o primeiro a dar a notícia e a postura inabalável diante de pressões durante mais de três décadas pavimentaram o caminho para que o Comércio da Franca chegasse vigoroso aos cem anos. Sem ele, o centenário não seria o mesmo.
Antes de inscrever o seu nome na história do jornalismo nacional, Corrêa Neves protagonizou uma história de vida digna dos melhores roteiros de filme. Integrante de uma família humilde, ele nasceu no dia 28 de setembro de 1927 na zona rural de Itirapuã. Ainda menino, ajudou os pais, Thomaz Corrêa Neves e Maria Patrocínia de Carvalho, e os irmãos, a cuidarem da lavoura de café na fazenda em que moravam.
Aos 14 anos, deixou a pacata Itirapuã e foi embora sozinho para São Paulo, fugindo de um tio que o espancava. Havia ficado órfão recentemente. “Ele contava que na capital, aonde chegou de trem, havia dormido na rua 31 dias, debaixo de viaduto”, conta Sonia Machiavelli, presidente do Conselho Consultivo do Comércio, que se casou com Corrêa Neves em 1972.
Inteligente e disposto a qualquer desafio, não demorou para o jovem deixar as ruas e começar a trabalhar. O primeiro serviço foi em um bar na Avenida São João. O salário era pequeno, mas morava num quarto anexo e tinha direito a refeições. Pôde fazer um curso de Madureza, espécie de intensivão que possibilitava o diploma do ginásio em um ano. No serviço do bar, conheceu Castro Neves, que dirigia o jornal A Noite e num futuro ainda longínquo viria a ser ministro do Trabalho do governo Jânio Quadros.
A amizade abriu portas e permitiu a Corrêa ter contato com literatura, jornalismo e política. Encaminhado por Castro Neves, pisou pela primeira vez na redação de um jornal em junho de 1951. Dali foi para o O Dia, passou por A Platéia e se transferiu para os Diários Associados. Ao lado de Samuel Wainer, fez parte da equipe de fundadores do lendário Última Hora, onde se destacou como repórter político. Corrêa também trabalhou na Imprensa Oficial do Estado e na Assembleia Legislativa. “Aos 24 anos já assumia a chefia de gabinete do prefeito Willian Salem. Os amigos dele desta época, a quem conheci muito posteriormente, o definiam como inteligente, curioso, destemido, com enorme capacidade de trabalho”, disse Sônia Machiavelli.
Além das atividades jornalísticas, atuava em campanhas políticas. Nas décadas de 50 e 60 assessorou Adhemar de Barros. Em 1960, Adhemar decidiu disputar a presidência da República pela segunda vez. Corrêa Neves percorreu todo o País ao lado do candidato ajudando-o na campanha eleitoral. Jânio Quadros saiu vencedor. Dois anos depois, Adhemar de Barros concorreu ao governo do Estado e foi eleito pela terceira vez. Corrêa tornou-se secretário de Imprensa do governador. Com a influência que exercia nos meios políticos da Capital e por conta das conquistas que ajudou a trazer para Franca junto ao governo, como a instalação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, hoje Unesp, passou a ser conhecido como “o deputado sem cadeira”.
Em junho de 1966, Adhemar teve o mandato cassado e exilou-se na Alemanha e França. Fiel ao “comandante”, Corrêa seguiu com o ex-governador para a Europa, onde ficou por quase um ano. No retorno ao Brasil, permaneceu por um breve período em São Paulo até decidir voltar de vez para Franca. Disputou então as eleições para deputado estadual duas vezes e se elegeu vice-prefeito, em 1968, na chapa liderada por José Lancha Filho.
A relação de amor do jornalista com o Comércio começou em março de 1973. O então diretor, Alfredo Costa, estava cansado e pretendia “ passar o jornal adiante”, como se dizia à época. Fez uma proposta de venda a Corrêa Neves. “O Dr. Alfredo, que eu havia conhecido na faculdade, me disse que percebia que o Corrêa era muito sério e não iria deixar o jornal morrer. O Dr. Alfredo confiou nele, mas foi complicadíssimo comprar. As pessoas achavam que o Corrêa era rico. Não era”, lembrou Sônia Machiavelli.
Corrêa vendeu um apartamento que tinha em São Paulo e uma gleba de terras no Mato Grosso. Associou-se a Delcides Essado e decidiu fechar o negócio, comprar o Comércio. Divergências quanto ao rumo dos negócios colocaram fim na sociedade um ano e nove meses depois. “Novas inquietações começavam. Para comprar a parte de Delcides Essado, Corrêa contraiu empréstimo com o empresário de cinema José Bittar. Essa dívida ficamos pagando por oito anos. Foram tempos muito, muito difíceis”.
Um ano após comprar o jornal, Corrêa inaugurou a sede própria na Rua Ouvidor Freire. Na época, Sônia estava grávida do primeiro filho, Corrêa Neves Júnior, hoje diretor-executivo do GCN. O segundo filho do casal, André Corrêa Neves, nasceria em 1977. “A primeira coisa importante que meu pai fez foi estabelecer que o jornal tinha que ser auto-suficiente, deveria funcionar como uma empresa. Não poderia depender de outros negócios, tinha que se manter com as próprias forças”, conta o filho Júnior. A diretora-administrativa do Comércio, Dulce Xavier, aprendeu a trabalhar com Corrêa Neves aos 17 anos e dividiram a mesma sala por duas décadas. Ela se lembra como o jornalista se preocupava em gerir a empresa. “Ele ensinava e falava com muita frequência: ‘qualquer pessoa administra com dinheiro. É na ausência do dinheiro que a gente sabe o que é um bom administrador’. Ele já falava isto lá no começo da década de 80. Tinha preocupação enorme com o que entrava e com o que saia. O dinheiro tinha que dar”, contou ela.
Com o rígido controle financeiro, o Comércio conseguia se sustentar e permitia investimentos em modernos equipamentos, impensáveis na década de 70 para um jornal sediado em uma cidade do interior. Corrêa aposentou a velha Marinoni, impressora que atravessara décadas com Ricardo Pucci e Alfredo Costa, e trouxe para Franca o que havia de mais avançado até então. “Até aquele momento eram máquinas planas, que imprimiam cada folha separadamente e inviabilizavam tiragens mais expressivas. Ele decidiu que era impossível avançar o jornal assim e importou uma impressora rotativa. O Comércio foi um dos primeiros jornais do Estado a trazer uma máquina dessas dos Estados Unidos”, contou Corrêa Júnior.
Com a experiência de jornalismo adquirida em São Paulo por quase vinte anos, Corrêa buscou profissionais que haviam trabalhado com ele na Última Hora para promover uma profunda reforma editorial, num tempo em que este conceito nem existia. Ao mesmo tempo, começou a ampliar a estrutura da redação, formando equipes de repórteres, fotógrafos e editores. Os jornais da época tinham a tradição de colocar na capa os acontecimentos de Brasília e, até mesmo, do exterior. Corrêa Neves inovou ao dedicar os espaços mais nobres do Comércio para destacar o dia-a-dia de Franca.
Outra inovação foi a aposta de ampliar o segmento dos anúncios classificados, decisão que garantiu por muito tempo o aporte financeiro da empresa e ajudou a consolidar a posição do Comércio como o preferido do leitor francano e da região. Corrêa apostou na venda de exemplares. Durante anos, aos domingos, tinha o hábito de percorrer as bancas e “repor” os jornais, atentando sempre para o tipo de noticiário que ganhava maior repercussão. “Meu pai deixou um legado importante. Ele acreditou muito num momento em que o jogo não era propício; não era possível ver ali com exatidão no que ele estava apostando. Fez muito sentido só depois. Ele se antecipou muito ao entender que era preciso aproximar o noticiário das pessoas”, disse o filho. “O Corrêa era ousado, corajoso e firme nas suas posições. Não recuava de suas decisões. Sabia o caminho que estava trilhando. Era um homem de atitude, de personalidade muito firme”, completou Sônia Machiavelli.
Corrêa Neves marcou sua trajetória no Comércio pela busca da notícia em primeira mão. Não media esforços para dar um “furo” de reportagem. Notabilizou-se por publicar na capa vitórias do piloto Ayrton Senna em corridas que haviam sido disputadas durante a madrugada. Era um obcecado pela notícia e pelo debate político, inclusive internacional. Embora não falasse árabe, passava horas diante de um canal de TV de Dubai tentando entender as discussões que aconteciam no parlamento, lembra o filho. “Ainda não conheci jornalista com maior conhecimento do mundo árabe, das questões palestinas e das demandas israelenses ”, diz Sonia Machiavelli.
O jornalista não aceitava que alguém tutelasse o que ele poderia ou não escrever no jornal. “A credibilidade do jornal estava acima de tudo para ele. Ele sempre foi pulso firme, determinado, custasse o que custasse, doesse a quem doesse. O jornal conseguiu esta credibilidade, alcançou chegar aonde chegou, graças a esta firmeza dele”, afirma Sandra Lima, Executiva de Contas Premium e Plus do GCN, que soma 25 anos de Comércio. “Ele era extremamente severo, rigoroso com assuntos do jornal. Para ele, tinha que ser o preto no branco. Ou confiava ou não confiava. Não tinha meio termo. Mas comovia-se facilmente e era bondoso. Mantinha a palavra dada, nem precisava assinar documentos”, disse Dulce Xavier.
Sidnei Ribeiro começou a trabalhar no dia 30 de junho 1980, dia do aniversário do Comércio. Ele conviveu com Corrêa Neves por 25 anos e afirma que não haveria o centenário se não fosse a maneira com a qual o jornalista dirigiu a empresa. “O jornal só continuou existindo por causa do Corrêa. Ele era determinado, persistente e tinha muita visão de jornal, de negócio. Se fosse outro, teria desistido. Era uma coisa que ele amava, que gostava muito de fazer”, disse o jornalista.
Sem nunca ter se afastado da redação do Comércio durante 32 anos, Corrêa foi além e emprestou sua força, entusiasmo e paixão por Franca também como presidente da Francana, o seu time do coração, de 80 a 84.
Os problemas de saúde colocaram um ponto final na sua longa trajetória. Na noite do dia 18 de agosto de 2005, o guerreiro não resistiu a uma série de internações, iniciada no começo daquele ano, quando passou por uma cirurgia em Ribeirão Preto para drenar líquido acumulado no cérebro (hidrocefalia). Morreu no Hospital São Joaquim, após sofrer crise convulsiva seguida de parada cardíaca. Ao seu lado estava sua mulher, Sônia. Foram 77 anos, dez meses e 20 dias de vida e mais de três décadas de amor e dedicação ao Comércio da Franca.
Corrêa conviveu com altas autoridades, conheceu o mundo, jantou em palácios com presidentes e reis, mas dizia que em nenhum outro lugar tinha sido tão feliz quanto no Comércio da Franca. Demonstrava paixão e amor pelo jornal. Fez do Comércio uma trincheira, investiu e realizou o que era possível e impossível num tempo em que Franca ainda se mostrava uma cidade muito mais conservadora. “Se pudesse, acho que ele exigiria de ter sido sepultado dentro do jornal, de tanto que gostava. O centenário não seria possível sem ele, ou, pelo menos, seria muito diferente. Talvez o jornal fosse um veículo com menor expressão, mais tímido. Felizmente, o Comércio chega aos cem anos muito relevante para a comunidade e região”, concluiu Corrêa Neves Júnior. “Ele nos deixou um legado de coragem, honestidade, amor à profissão. Se não fosse o trabalho dele, incansável, sem tréguas e sem medo, durante 32 anos, não creio que estivéssemos celebrando esta data. Acho que o jornal teria minguado”, finalizou Sonia Machiavelli.
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