O criador e a criatura


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José de Mello (que aparece de óculos, no centro da foto) ladeado por parte de seus familiares, entre eles, parte de suas noras, genros e netos
José de Mello (que aparece de óculos, no centro da foto) ladeado por parte de seus familiares, entre eles, parte de suas noras, genros e netos
Ideias vanguardistas na cabeça, sangue de empreendedor nas veias, retidão no caráter, sonhos no coração. Este mosaico de atributos é parte da essência da personalidade do francano José de Mello, um jovem adulto de 29 anos que na segunda década do século passado se dividia entre os afazeres de arrimo de família, os ofícios de seu estabelecimento comercial e as “obrigações” religiosas. Foi ele quem, de peito aberto, apostou na ideia de registrar a vida, o cotidiano e seus acontecimentos em papel-jornal e fez circular, em 30 de junho de 1915, a primeira das 22.389 edições deste Comércio da Franca.
 
É provável que apesar de mirar objetivos ousados para a época, José de Mello não apostaria nem uma das sete penas de ouro dos tinteiros que comercializava em sua loja que o seu sonho concretizado romperia o século e atravessaria tantas gerações. Tampouco colocaria a prêmio alguma roda de um Ford - que pôs à venda (ou a troca por uma casa) nos classificados do jornal - que sua própria trajetória de vida estaria sendo, hoje, contada em minúcias pelo fato de seu empreendedorismo ter resultado em um dos mais respeitados veículos de comunicação do País.
 
Computadores modernos, softwares, parque gráfico equipado com uma potente impressora importada da Índia, a Pressline 30, trabalho duro e suor de uma equipe com cerca de 240 profissionais do GCN Comunicação - grupo que edita o Comércio -, atualmente, dão continuidade à história que Mello começou a escrever em máquinas de datilografia Continental e a imprimir em uma tipografia nos fundos de seu estabelecimento na praça Nossa Senhora da Conceição. Redação e impressão do jornal - então grafado como “O Commercio da Franca” - aconteciam no mesmo endereço onde era possível comprar desde livros, materiais didáticos e artigos de papelaria, até as “últimas novidades” da moda em roupas, além de prestar “serviços typographicos”, conforme informavam anúncios da Casa Mello publicados à época.
 
Historiadores e familiares são unânimes ao afirmar que essa diversidade de negócios do comerciante já lhe garantia uma vida financeiramente confortável. Diante de seu conhecido tino para os negócios, supõe-se que o Comércio da Franca seja fruto de uma ideologia, uma paixão, já que jornal impresso não era visto como negócio na época.
 
Mas Mello era sabidamente amante da literatura, da cultura e das artes e tinha uma relação quase passional com a informação. Razões que lhe teriam dado condições de perceber uma lacuna nos serviços de comunicação social local.
 
O pipocar de jornais natimortos era intenso e Franca ainda estava a mais de dez anos de ver surgir sua primeira rádio - a PRB-5 (hoje rádio Hertz).
 
A população via ser desenhado um cenário que deixava para trás seus traços de arraial sertanejo para tomar forma urbana. “O Comércio foi criado exatamente na época do desenvolvimento urbano de Franca que, com a chegada do café, havia deixado de ser arraial para se tonar um grande centro urbano da região. Era uma cidade próspera, com ruas pavimentadas (com paralelepípedo), que via surgir muitos estabelecimentos comerciais, como lojas, bares, oficinas e também indústrias e prestadores de serviços. Uma cidade que se transformava em núcleo urbano precisava de comunicação”, explica o historiador e professor aposentado da Unesp, José Chiachiri Filho.
 
Mello, então, agregou aos seus negócios a publicação impressa que chegou “com o firme propósito de contribuir para o engrandecimento de nossa terra”, como menciona parte de um texto publicado na edição inaugural de quatro páginas, que circulou na tarde fria de uma quarta-feira. Até o jornal ser vendido para Vicente Paiva, em 1920, o feito se repetiria outras 257 vezes, sempre nas tardes de quarta-feira.
 
“Definitivamente, jornal, naquela época, era fruto do amadorismo e não era lucrativo. Era fruto realmente apenas de ideologia”, reforça Chiariri. E se era mesmo apenas realização pessoal que Mello almejava com a empreitada, católico fervoroso que era, deve ter se sentido abençoado ao ver o produto de seu idealismo circulando na cidade naquele 30 de junho. Justamente nesta data, o salmo responsorial da liturgia (que ele acompanhava diariamente, segundo seus familiares), conforme registros da igreja católica, foi finalizado com a frase “Qual o homem que não ama sua vida, procurando ser feliz todos os dias?”. Era para o quê aparentemente ele trabalhava.
 
 
Estilo de vida e personalidade
Tal qual o personagem central de Triste Fim de Policarpo Quaresma, romance de Lima Barreto com publicação em livro contemporânea à criação do Comércio, José de Mello vivia, literalmente, cercado por livros, sem ter nenhuma titulação acadêmica. 
 
Além de vender um sem número de obras em seu estabelecimento, mantinha em casa um rico acervo.
 
Aparentemente não via razão no academicismo para si - cursou apenas os primeiros anos do ensino fundamental - e se tornou um autodidata aficionado por leitura, sempre sedento por conhecimento. Mesmo embora tenha vencido na vida desta forma, o Mello não fez do autodidatismo uma bandeira. Visionário, via o diploma como ferramenta essencial para as futuras gerações, tanto que se empenhou para legar ao mundo um filho engenheiro e cinco filhas professoras - dos quais ele e sua mulher, Irene Greco de Mello, se orgulharam até os últimos suspiros.
 
Nascido em 5 de junho de 1886 do casal Antônio Gabriel de Mello e Maria Custódia de Mello, José de Mello se casou com Irene em 19 de maio de 1909, aos 22 anos.
 
Uma das principais preocupações do casal era educar e formar os filhos José Benedito, Maria, Laura, Helena, Letice e Therezinha em bons cursos. Conforme relata uma de 19 netos de José e Irene, a professora de línguas Maria Auxiliadora Nascimento Pereira, 65, a Dola, a inquietação rendeu a seu avô um costume curioso: como forma de incentivar o hábito da leitura nos filhos, ele permitia que os mesmos pegassem quaisquer livros que chegassem para venda em seu comércio e os lessem, mas entreabrindo as páginas delicadamente, para que os exemplares pudessem voltar para as prateleiras.
 
Da figura profissional de José de Mello (empresário, jornalista, comerciante e representante da elite cultural de Franca), quem mais nos aproxima é o seu sobrinho Mauro Greco - francano de memória invejável que teve o que ele chama de “privilégio” de conhecer o tio também como patrão.
 
Aos 85 anos e vivendo na capital paulista há mais de 60, Mauro não chegou a trabalhar no Comércio da Franca, mas foi funcionário de Mello na Livraria Central, empreendimento na praça Barão, fundado posteriormente à venda do jornal. Mauro é filho de Ireneo Greco (morto em 1973, aos 77 anos), irmão de Irene. Era um homem também culto que fazia um reconhecido e prestimoso serviço de encadernação e restauração de livros, serviço esse que prestava principalmente para médicos, advogados e outros profissionais para os quais era comum manter uma biblioteca em casa.
 
“As condições da época não me permitiram estudar, então titio gentilmente me acolheu como um funcionário dele para trabalhar na livraria. Fui balconista por um período em 1942, quando eu tinha por volta de 11 anos”, disse Mauro.
 
Nas palavras dele, Mello era um patrão recatadíssimo, do tipo que jamais deixa a educação de lado, mas se recusa a “passar a mão na cabeça”.
 
Ele conta que o tio era comerciante nato - teria, inclusive, sido proprietário de uma espécie de transportadora (de carroças) antes de abrir a Casa Mello. “Antes, consta-me que ele tinha contratado alguns carroceiros que puxavam mercadorias, materiais de construção e outros produtos. Tinha carroças para puxar artigos, era um negócio”, disse.
 
Mauro afirma que sempre admirou o amor do tio pelos livros e seu comportamento. “Titio era extremamente culto, inteligente, ligado às coisas do intelecto. Um homem distintíssimo, elegantíssimo, extremamente reservado, um cavalheiro que estava sempre vestido de terno de casimira.”
 
Ele cita que uma das provas da elegância de Mello era a pontualidade com que cumpria os seus compromissos. “Lembro-me que ele era metódico, ele mesmo abria a livraria bem cedo - eram duas portas largas, de ferro -, saía apenas para almoçar, às 11 horas, e exatamente ao meio-dia apontava no alpendre, voltando para o trabalho, sempre de olho no relógio de bolso com corrente de ouro que o acompanhava.”
 
Outro hábito comum de Mello, segundo Mauro, era o de acordar bem cedo, tomar um banho frio e fazer muitas caminhadas. “Entre os lugares que ia frequentemente estava o mercado municipal, onde comprava frutas, legumes e verduras frescos. Era ele quem fazia pessoalmente as compras da casa”, disse.
 
Mencionada anteriormente, outra característica marcante da personalidade de Mello - esta a mais facilmente percebida ao se fazer o trabalho de resgate histórico de sua vida - era a importância que dava a sua fé. Ele cultivava fortes laços com os líderes da igreja católica e mantinha presença assídua na igreja.
 
Seria esta a razão pela qual sua família sempre morou em casas localizadas a não mais que 100 metros de distância da igreja Matriz: os três endereços residenciais dos quais seus descendentes dão conta ficavam no entorno do templo.
 
A devoção era, sobretudo, incentivada por Irene. “Era ela quem fazia questão de morar sempre ao redor da igreja. Sempre em casas de excelente qualidade. Era uma verdadeira matriarca. Ela controlava tudo: marido, filhos, genros. Gostassem ou não, eram todos obrigados a ir à igreja”, conta Mauro.
 
A dedicação à religião era tanta que, segundo Dola, Mello era membro do grupo intitulado “irmãos do santíssimo”, formado por homens que se reuniam para participar e auxiliar na celebração das missas e, após a cerimônia, adorar o Santíssimo Sacramento. “Ele tinha amizade próxima com os sacerdotes da Matriz e também com os agostinianos da igreja da Capelinha”, disse a neta.
 
Irene, por sua vez, além de também se dedicar intensamente às atividades da Igreja, gostava de costurar para a própria família, para pessoas carentes atendidas pela comunidade católica da Catedral e até mesmo para si: era ela quem tecia suas próprias saias escuras e blusas “cor de carne” que usava invariavelmente. “Ela tinha sempre quatro saias e seis blusas, do mesmo modelo e cor, todas feitas por ela”, disse Dola.
 
O comportamento de Irene, sobretudo quando envolvia questões religiosas, era austero, mas ela era “toda coração” no trato com aqueles a quem queria bem e sabia receber com um sorriso e um afago quem chegava à sua casa. “Eu e meu irmão filamos muitos almoços lá. A titia era muito receptiva e carinhosa, não nos recebia com frieza. Sempre chegávamos com a mesma frase: ‘mamãe nos mandou perguntar se a senhora poderia receber dois hóspedes para o almoço’”, lembrou Mauro, com bom humor.
 
Quem também endossa o comportamento receptivo dos Mello é o ex-jogador de basquete e empresário Marcos Aurélio de Mello Magrin, o Piu, 75, proprietário do restaurante Barão, filho de Jovelina de Mello Magrin, uma das irmãs de José de Mello. Ele conta que se lembra das tardes de domingo em que ia até a casa dos tios e voltava com marmitas saborosas. “Tenho orgulho de me lembrar. Eram tempos mais difíceis e eles tinham uma situação melhor na família. Nos domingos à tarde íamos passear e buscávamos sobras de um macarrão delicioso”, contou, sorrindo.
 
Assim como Mauro, ele se lembra com nitidez da figura física de José de Mello. Zequinha, como era chamado pelos familiares e pessoas próximas, era magérrimo, usava óculos, mantinha um pequeno bigode e vestia-se tal como os homens de seu convívio naquele início do século 20, seguindo o mesmo estilo praticamente a vida toda. 
 
O estilo era inspirado no padrão, com muita formalidade e conservadorismo, traduzidos em peças bem cortadas de alfaiataria. Constantemente trajava terno completo em tons de cinzas escuros - calça, paletó e, não raro, colete - sobre camisa branca de colarinho rijo arrematado com gravata discreta e prendedor. Os sapatos, que àquela época passavam a ser considerados acessórios da moda masculina, eram sempre pretos, assim como os chapéus, pelos quais ele tinha especial apreço.
 
“Ele era assim onde estivesse. Lembro-me dele se desfazer apenas do chapéu quando chegava em casa. Com ‘manga de camisa’ (camisa de manga curta), jamais o vi”, conta a neta Dola.
 
Mais que os trajes formais, “vovô Zequinha” também não se despia do ar reservado. “Não sabemos muito sobre o lado profissional dele, porque tínhamos mais abertura com a vovó e os homens não eram de falar muito em casa sobre trabalho. O que posso dizer, com certeza, é o que se repete sempre sobre ele: ele era um homem sério, prático, correto, muito ligado à literatura e que queria divulgar o que acontecia na cidade”, disse Dola, completando que, até aonde tem conhecimento, seu avô nunca teve ligações ou interesses políticos conhecidos que tivessem fomentado a criação do jornal.
 
 
Morte
Mello morreu com 83 anos, aos 20 minutos do dia 5 de maio de 1970, no hospital Regional de Franca, em decorrência de aterosclerose, insuficiência cardíaca e desidratação, conforme consta em sua certidão de óbito. Irene havia morrido dois anos antes, em 28 de junho de 1968, aos 77 anos, em casa, na rua Major Claudiano, 464, vítima também de aterosclerose, esclerose coronária e insuficiência cardíaca. Coroando toda uma vida dedicada à fé, segundo Dola, Irene morreu rezando. “Minha tia Maria, única que não se casou e a quem coube cuidar dos pais até ao fim, presenciou a morte da mãe. Minha avó disse a ela: ‘vamos rezar... Ave Maria, cheia de graça (...), agora e na hora de nossa morte, que é agora, amém’. E morreu.”
 
O casal está enterrado no Cemitério da Saudade, em Franca, e não deixou bens inventariados. Todos os filhos, nora e genros também estão mortos. Seis dos 19 netos já morreram. 
 
Os que vivem, bem como as dezenas de bisnetos e tataranetos, se orgulham do grande feito de seu patriarca, que semeou de maneira sólida um ideal que alcançou, com vigor, um século de sucesso neste último 30 de junho.
 
Para o GCN, nada mais extraordinário e gratificante repetir agora as palavras que o próprio José de Mello escreveu há exatos cem anos, na primeira edição do periódico: “no firme propósito de prestar algum serviço à população ledora, entregamos-lhe hoje o nosso jornal”.

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