Uma liga de super-heróis?

Sempre gostei de trabalhar. Quando estava no começo da minha carreira no Comércio, há mais de duas décadas, eram tantos os desafios

07/06/2015 | Tempo de leitura: 4 min

“As pequenas mentiras fazem o grande mentiroso”
 
William Shakespeare, dramaturgo inglês
 
 
Sempre gostei de trabalhar. Quando estava no começo da minha carreira no Comércio, há mais de duas décadas, eram tantos os desafios que durante muito tempo cheguei a emendar três dias e noites de trabalho praticamente ininterruptos. Chegava ao jornal na hora do almoço de quinta-feira e só saía no final da manhã de domingo. Neste hiato, escrevia reportagens, digitava textos de agências, montava páginas, ajudava no encarte, levava exemplares nas bancas. Jantava nos bares próximos à Ouvidor Freire, onde ficava o jornal. O café da manhã era na barraca de pastel do japonês nas feiras-livres. Desde criança durmo pouco e, nesta época, descansava apenas três ou quatro horas por noite. De vez em quando, num sofá da sala do meu pai. Não raro, sobre as imensas bobinas de papel. Eram tempos insanos, em que amigos como Rodrigo Henrique (então pestapista; hoje Executivo de Contas) e Dirceu Garcia (à época, encartador; hoje, fotógrafo) me acompanhavam nesta rotina. Tínhamos menos de 20 anos, mas a gente chegava no domingo exaustos. 
 
Hoje é tudo muito diferente, o número de funcionários bem maior e ninguém que trabalha para o GCN tem rotina remotamente parecida com esta. Nem eu, é bom que se diga. Mesmo assim, a maior parte dos amigos e familiares ainda considera que minha jornada diária, que se estende por umas doze horas - aí incluído o sábado - é longa demais. Lembrei disso tudo porque, nesta semana, a prefeitura de Franca anunciou que renovou o contrato de terceirização dos serviços médicos dos prontos-socorros municipais com o ICV (Instituto Ciência e Vida), um tipo de organização que parece ter entre seus colaboradores alguns profissionais que, se existirem de fato, são super-heróis da dedicação ao trabalho. Sou fichinha perto desses caras.
 
Alexandre Ferreira (PSDB) contratou o tal instituto pela primeira vez em meados de 2014. O valor do contrato para seis meses era de R$ 5.391.360. Duro e inflexível com os funcionários de carreira da prefeitura, Alexandre tem se mostrado absolutamente compreensivo e generoso quando se trata de terceirizados. Sem pestanejar, concordou em exceder o pactuado e pagou $ 8.370.070 pelo período, quase R$ 3 milhões adicionais.
 
Veio então a primeira renovação. Caberia ao ICV operar nos prontos-socorros por mais seis meses, entre janeiro e junho deste ano. Deveria receber, pelo período, R$ 5.391.360. Mas só nos cinco primeiros meses (de janeiro a maio) a prefeitura já desembolsou R$ 7.599.330. No acumulado, a ICV custou 50% a mais do que o esperado. A prefeitura deveria ter pago pelos doze meses exatos R$ 10.782.720, mas desembolsou R$ 15.969.400.
 
É óbvio que um contrato com tais características despertaria a atenção dos órgãos de fiscalização e controle. Dito e feito. O Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Tribunal de Contas do Estado (TCE) estão com processos ou investigações em andamento. Mas coube ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina de SP) o mérito de descobrir que o ICV pode ter em seu quadro de funcionários super-heróis capazes de fazer o Homem de Ferro ou o Wolverine corarem de vergonha. 
 
Mas, afinal, de quem estamos falando? Não sei. Só se conhecem seus feitos. Segundo os documentos obtidos pelo Cremesp, dois médicos contratados pelo ICV alegam ter trabalhado TODOS os 31 dias do mês de agosto de 2014. Os registros apontam que as tais figuras não apenas trabalharam sem um segundo de descanso como também não fizeram qualquer intervalo para dormir ou ir ao banheiro. Não pararam para comer, não tomaram banho, não assistiram TV nem leram jornal. Sequer, saíram do pronto-socorro. Trabalharam 62 plantões de 12 horas seguidos, num total de 744 horas num mês que tem... 744 horas. É ou não é um fenómeno? Só não pensem que são altruístas. Para trabalhar non-stop num ritmo que desafia o próprio conceito de humanidade, receberam boladas de R$ 83,7 mil, ou R$ 2,7 mil por dia de trabalho. Cada um. 
 
Os dois médicos não foram os únicos. O Cremesp identificou um outro profissional quase tão virtuoso - fez 30 plantões em 31 dias, com duas folgas - pelos quais fez jus a um salário de R$ 81 mil. Há outros tantos que somam mais de 15 plantões em 30 dias trabalhados. É praticamente uma ‘liga extraordinária’ inteira dando expediente no “PS Dr. Azzuz”. Impressionante.
 
À época das denúncias, no ano passado, o prefeito Alexandre Ferreira chegou a admitir estranheza. “Não sabia dessa situação (...) Se for fato, corrigiremos. Não vamos aceitar irregularidades seja de quem for”. De lá para cá, não falou mais no assunto e, indiferente às pontuações feitas pelo Cremesp, pelo MPT e pelo TCE, resolveu renovar outra vez o contrato com a ICV - pelo qual, provavelmente, há de pagar 50% acima do pactuado, conforme o histórico autoriza estimar. 
 
Conclui-se, portanto, que Alexandre Ferreira não identificou irregularidades como superfaturamento ou fraude nas horas faturadas contra a prefeitura. Se está tudo certo, se os tais médicos existem e se de fato cumpriram as jornadas que alegam, seria pertinente que o prefeito aproveitasse o momento para contar à população, que é quem paga a conta, quem são esses super-heróis. Afinal, ter entre seus prestadores de serviço homens capazes de trabalhar 31 dias seguidos sem parar nem para dormir deve ser privilégio exclusivo de Franca. Com a palavra, Alexandre Ferreira.
 
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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