Quando há fumaça, mas sem fogo

Nunca me esqueço de uma manhã, em algum ponto da segunda metade dos anos 90, em que um boato corria forte em todo lugar. Carla Perez, dançarina do É o Tchan, m

31/05/2015 | Tempo de leitura: 4 min

“Nada se espalha com maior rapidez do que um boato”
Virgílio, poeta romano 
 
 
 
Nunca me esqueço de uma manhã, em algum ponto da segunda metade dos anos 90, em que um boato corria forte em todo lugar. Carla Perez, dançarina do É o Tchan, muito mais notória pelo 102 centímetros de bunda do que pela singeleza de sua inteligência, teria participado alguns dias antes do programa Jô Soares Onze e Meia, então transmitido pelo SBT, e cometido duas gafes monumentais. Na primeira, diante de uma pergunta sobre qual o seu hobby (passatempo), teria respondido uma terrível imbecilidade: “Tenho um robe preto, mas o meu preferido é vermelho”. Jô também teria perguntado a Carla que lugar do mundo ela gostaria de conhecer. “Nova Iorque, na Europa”, respondera a loira.
 
Fiquei intrigado. Não porque tivesse qualquer expectativa com relação aos predicados intelectuais da dançarina de pagode, mas simplesmente porque tinha visto trechos da entrevista e não me recordava de nada parecido. Nenhum jornal ou revista tinham repercutido o assunto. Mas todos que comentavam eram enfáticos. Tinha gente que até jurava. O mais incrível é que quando você perguntava a alguém, diretamente, se havia visto a tal entrevista, a resposta era sempre evasiva. “Minha mãe viu”, “minha namorada me contou”... Se você insistisse para que a pessoa confirmasse com a sua “fonte”, ela voltava com outra evasiva. “Na verdade, ela disse que foi uma prima que falou”. Sempre havia alguém dizendo que outro alguém havia visto. Mas o boato era incontrolável. 
 
Me lembrei disso nesta semana quando, no final da noite de quinta-feira, recebi um WhatsApp enviado por uma pessoa muito próxima. Preocupado, informava sobre um possível sequestro de crianças em Franca e queria saber se eu tinha alguma informação. Segundo a mensagem, um grupo de homens batia de porta em porta, à noite, perguntando quantas crianças havia na casa porque desejavam fazer fotos para colocar em outdoor. Quando confirmavam que havia crianças na casa, surravam os adultos e raptavam as crianças. Havia quatro áudios distintos. Num deles, a pessoa “garantia” que duas crianças tinham sido encontradas mortas numa cidade da região, ao lado de um rio, e sem os órgãos internos. 
 
Obviamente, era tudo mentira. Não houve qualquer sequestro. Muito menos, cadáveres de crianças foram encontrados. Até onde consegui apurar, a “história” surgiu em Curitiba, no Paraná, e ganhou o Brasil de WhatsApp em WhatsApp. As pessoas começaram a acrescentar seu “toque pessoal” e seguiram repassando, acrescentando um bairro aqui, um detalhe acolá... Invencionice pura, que tem acontecido com assustadora frequência. 
 
Nas últimas semanas, grupos do WhatsApp de Franca repercutiram também, inclusive com fotos, uma outra “informação”. Dois “suspeitos” estariam pedindo água de casa em casa e, depois, agrediam os moradores. O boato se alastrou de tal forma que acabou envolvendo até o nome do delegado Daniel Radaeli como suposta fonte que “confirmava” a narrativa. Preocupado, Radaeli participou de programas de rádio para desmentir tudo.
 
Num caso extremo acontecido no Guarujá, em maio do ano passado, a dona de casa Fabiane de Jesus, 33, acabou linchada. Durante duas horas, foi socada, chutada, apedrejada. Mãe de duas filhas, Fabiane morreu porque foi confundida com um retrato-falado postado numa página de Facebook que narrava uma “história” sobre o sumiço de crianças. Segundo a tal página, as crianças sequestradas eram sacrificadas em rituais de magia negra. A assassina seria a mulher do retrato. Fabiane foi morta por se parecer com ela. Tudo mentira. Nunca houve os tais sequestros. O retrato-falado tinha sido feito pela polícia carioca, em 2012, para identificar a suspeita de um crime ocorrido no Rio de Janeiro, e foi usado inadvertidamente pela maldita página do Guarujá. A combinação de boataria, irresponsabilidade e selvageria terminou numa vítima inocente espancada até a morte. 
 
Se nos anos 90 boatos eram capazes de se espalhar em poucos dias país afora, de boca em boca, até ganhar contornos de realidade, a situação ficou muito pior hoje em dia, com a facilidade da edição de imagens e sons aliada à comunicação instantânea e uso indiscriminado de redes sociais. Muita gente repassa uma história sem saber se é verdade, sem confirmar se algum veículo de comunicação relatou aquele fato, e o que é pior, sem ponderar as consequências, contribuindo para uma corrente cujos efeitos perversos podem ir muito além da simples maledicência. 
 
É grande a chance de muita gente inocente ainda acabar transformada em vítima simplesmente porque alguém viu seu nome e imagem associados a um delírio qualquer num grupo de WhatsApp. Diante de uma narrativa fantasiosa, o melhor a fazer é deletar. Passar para frente é assumir o risco de contribuir para um erro que pode ser fatal. Neste caso, sem nenhuma fantasia.
 
Em tempo: os boatos sobre as gafes de Carla Perez seguem fortes até hoje, principalmente na internet, onde centenas de páginas se dedicam ao assunto, muitas narrando “detalhes” do episódio. Apesar de muita gente continuar jurando que “viu” a tal entrevista, nada disso aconteceu. A revista Veja, em sua edição 1480, publicada em 27 de janeiro de 1997, trouxe a história completa: tudo não passou de um boato maldoso e Carla Perez nunca falou nada disso em entrevista ao Jô ou a quem quer que seja. Ainda assim, isso não significa dizer que a dançarina seja alguém com intelecto digno de menção. Ela já disse que “escola” se escreve com “i” e “isqueiro”, com “e”. Nestes casos, sobram registros em vídeo. Bem divertidos, por sinal.
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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