Perdições do Centro-Oeste

Quando os primeiros habitantes se instalaram às margens do córrego dos Bagres, naquele início do século XVIII, nada esperavam além de descansar

12/04/2015 | Tempo de leitura: 8 min

“Pior que não terminar uma viagem é nunca partir”
 
Amyr Klink, velejador brasileiro
 
 
Quando os primeiros habitantes se instalaram às margens do córrego dos Bagres, naquele início do século XVIII, nada esperavam além de descansar num lugar com água fresca e clima ameno. O “Pouso dos Bagres” foi “fundado” em 1722 por Anhanguera, o filho, no seu caminho desde São Paulo até os veios de ouro do Centro-Oeste, região que naqueles tempos era conhecida como “terra dos Goyá” em referência a uma mítica tribo indígena então extinta.
 
O “Pouso dos Bagres” virou “Belo Arraial do Capim Mimoso”, “Vila Franca del Rey”, “Vila Franca do Imperador” e, depois, simplesmente, Franca. É meu lar. A “terra dos Goyá”, então pertencente à Capitania de São Paulo, ganhou autonomia, se transformou em Goiás, transferiu sua capital de “Vila Boa de Goyaz” para a moderna e planejada Goiânia. Ali pertinho, em Anápolis, foi onde nasceu e viveu minha mulher até o início da fase adulta, quando então se mudou para Franca, terra natal do seu pai, para cursar Direito. Nunca voltou a morar em Goiás.
 
De tempos em tempos, percorremos as estradas que um dia foram as picadas do “caminho dos goiases”. João, o caçula, nem se importa com os 800 km de chão que consomem quase dez horas para serem vencidos. Simplesmente adora brincar na fazenda dos avós, onde se transforma num “mini-peão”. Sempre com suas inseparáveis botinas, anda a cavalo, sobe em árvores, pesca, vai para o curral de madrugada, se delicia com histórias de cobras e onças e só dorme vencido pela exaustão.
 
Na Semana Santa, fomos mais uma vez para Goiás. Desta vez, minha mãe, inconformada por já ter andado meio mundo, visitado grande parte do Brasil mas jamais ter pisado no Centro-Oeste, se juntou a nós. Estava ansiosa para visitar a terra da poeta Cora Coralina, para ver de perto o cerrado, para experimentar as delícias da culinária. 
 
Partimos na terça-feira rumo a Goiânia. Chegamos já muito tarde, cansados - mas famintos. Antes de nos registrarmos no hotel, fomos ao shopping jantar. Não sei se foram os ares do planalto central que provocavam algum efeito na minha mãe, uma mulher muito elegante e habitualmente comedida, mas o fato é que ela partiu com vontade rumo à destruição de um Outback Special, 225g de contrafilé preparados à perfeição na rede de comida australiana. Devidamente acompanhado por chope servido em canecas congeladas, e do qual fui privado por ser o motorista da excursão, o tal Special não demorou para evaporar. 
 
O dia seguinte estava reservado para “Goiás Velho”, a primeira capital do Estado e destino final da tropa de Anhanguera. O bandeirante demorou três anos desde o “Pouso dos Bagres” até as margens do Rio Vermelho, onde chegou em 1726 e encontrou ouro abundante. O lugar seria batizado de “Arraial de Sant’Anna”, depois “Vila Boa de Goyaz” e, com a transferência da capital do Estado para Goiânia nos anos 30 do século passado, finalmente “Cidade de Goiás” ou “Goiás Velho”. 
 
Terra Natal da grande poeta Cora Coralina, que morreu na mesma casa branca e verde às margens do rio Vermelho onde nasceu, depois de ter passado quase cinco décadas longe dali, Goiás Velho fica 125 km a oeste da capital, com muitos quilômetros de pista simples que exigem duas horas para serem vencidos. O lugar é incrível. A cidade está com seu casario colonial inteiramente preservado, pintado, cuidado. 
 
Depois de visitar o museu da Cora Coralina - que além de poeta, foi doceira - e incompreensivelmente não ter a chance de experimentar no local nenhuma das quitandas que lhe garantiram o sustento por décadas, já que Cora publicou o primeiro livro apenas aos 76 anos, saímos em busca de um lugar para almoçar. Depois de pedir informações a três ou quatro pessoas, fomos convencidos a rumar para o mercado municipal. Há uma única lanchonete, bem simples, comum. Nada que mereça permanecer na memória. A menos, claro, que você estivesse junto com minha mãe. Em busca do “sabor local”, ela sorveu logo dois pastéis de carne com guariroba, um palmito bem amargo típico na região. E, sem perder tempo, partiu para cima do meu empadão goiano, uma tortinha recheada com frango apimentado, que dividiu meio a meio. Nem o calor, que fazia a gente imaginar o inferno como um lugar refrescante, tirou o apetite dela. Do empadão, mamãe gostou. O pastel com guariroba, adorou. De quebra, comeu uma pamonha de sobremesa.
 
Chegamos a Goiânia a tempo de um banho antes do jantar. Resolvemos apostar no Piquiras, um restaurante bem tradicional. Mamãe resolveu pedir arroz com pequi, o espinhoso fruto que desperta paixões e ódios - e, claro, guariroba. O simulacro de risoto foi servido numa porção capaz de alimentar umas quatro pessoas do tipo robustas. Minha mãe, inacreditavelmente, comeu quase tudo - sozinha. “Meu filho, ameeeeeeei isso aqui”, repetia. Deu para perceber.
 
Amanheceu a quinta-feira e era hora de partir para a fazenda, 150 km a leste da capital, já bem perto da divisa com o Distrito Federal. Antes de pegar estrada, almoçamos no Madero, um lugar que anunciava uns hambúrgueres que pareciam deliciosos - e que, realmente, o eram. Antes dos sanduíches, minha mulher sugeriu que experimentássemos o pupunha assado, um palmito bem doce e suave. É servido no próprio tronco, quentinho, uma delícia. Vem em dois grandes gomos. Dividi um com minha mulher. Ganha um saco de pequi quem adivinhar a pessoa que comeu o outro gomo inteiro... 
 
Na fazenda, fomos recebidos à tarde com biscoitos de queijo, pães, requeijão artesanal queimado e tudo quanto é quitanda que você puder imaginar. Mamãe tinha assegurado no carro que não conseguiria comer “mais nada” naquele dia depois do duo pupunha-cheeseburguer. “Que esperança”, diria minha avó Dina. É claro que ela não resistiu e comeu. De tudo.
 
Foi assim também na sexta-feira, em Perinópolis, onde repetiu no almoço a experiência do arroz com pequi e guariroba, desta vez acompanhada também de um pouquinho de dobradinha, coisa “leve”, “suave”. Nos dias seguintes na fazenda teve ainda frango caipira, farofa, bacalhau... 
 
Mas o melhor mesmo aconteceu no sábado, quando visitamos Brasília. Fomos à Praça dos Três Poderes, caminhamos pela esplanada dos Ministérios, participamos da visita guiada ao Supremo Tribunal Federal. É possível até entrar no plenário, onde foi julgada a Ação Penal 470, mais conhecida como “mensalão”. O lugar, carregado de tanto simbolismo, é pequeno mas muito iluminado, com vidros em ambas as laterais.
 
Acho que tanta emoção funcionou como um Biotônico Fontoura para minha mãe. Saímos do STF e fomos para o Coco Bambu, especializado em frutos do mar. Nem bem entramos no restaurante, localizado às margens do Lago Paranoá, e mamãe já foi sentenciando. “Meu filho, já sei o que vou querer. Vi um casal comendo um peixe lindo”.
 
Sentamos, vieram os cardápios. Em menos de dez segundos, minha mãe havia localizado o que tinha despertado seu apetite. “Peixe Inteiro”. Um Pargo, assado, servido com legumes. O garçom serviu o couvert, ofereceu uma entrada, anotou os pedidos. Eram 14h45. Quinze minutos depois, volta o mesmo garçom. “Doutor, o peixe demora um pouquinho, viu?”. Quis saber quanto tempo. “Uns 45 minutos”, explicou. Estávamos de folga, sem pressa, a fazenda fica perto... e minha mãe queria o peixe. Qual o problema de esperar meia hora? “Tudo certo, sem problemas”, assenti.
 
Comemos pão, manteiga, patê, azeitonas, camarões marinados, beberam vinho, cerveja - e eu, refrigerante. Gente sentava, gente levantava das mesas ao lado e nada dos nossos pratos. Quando completamos uma hora de espera, comecei a ficar impaciente. Questionei o garçom. “Tá terminando de ‘chegar’ no ponto”, garantiu. Mais meia hora, e nada. O garçom desapareceu. Ninguém aguentava mais comer pão. Minha mãe, sem graça, tentava explicar que o “peixe estava tão bonito” na mesa do casal. 
 
Caminhávamos já para duas horas de espera quando meu sogro, Ronaldo Franchini, um dos homens mais tranquilos do Universo, perdeu a paciência. Inconformado, levantou-se e saiu à caça do gerente. Só sossegou quando encontrou o responsável. Exigiu explicações sobre o peixe - e o garçom. Ambos, desaparecidos. “Esse peixe demora”, disse o rapaz. “Duas horas?”, quis saber meu sogro. “É, esse está demorando mais. Mas já vai sair...”, disse o gerente, com ar esquisito.
 
Enfim, às 17h25, o pargo, deitado em berço esplêndido, deu o ar da graça. Assado beeeeeeeeeeeeeem lentamente, era bonito de ver e muito perfumado. E o danado ainda estava gostoso. Não fosse a espera, teria sido perfeito. Claro que isso não afetou o apetite da mamãe. Os “de cujos” do pargo se resumiram a espinhas. 
 
Viemos para Franca na segunda-feira. Ao entrar no carro, minha mãe sentenciou lei marcial: estávamos todos, o que incluía eu, minha mulher e meu filho, de dieta. “Chega! Comemos demais”. É verdade, tanto quanto é verdade que promessas desta natureza, nestas circunstâncias, raramente duram mais do que um dia. A da minha mãe resistiu por apenas 2 horas, tempo que gastamos da fazenda até Terezópolis de Goiás. Ali, atravessamos uma feirinha de produtos típicos. Quando desacelerei o carro para passar sobre uma lombada, mamãe, delicada, perguntou se não dava para “dar uma paradinha”. Obviamente, concordei. “Quero comprar umas coisinhas”. Meia hora depois, junto às bagagens, voltávamos para o “Belo Arraial do Capim Mimoso” com doses generosas de doce de leite, goiabada cascão, marmelada de caixinha, doce de buriti, conserva de pequi, guariroba, queijo meia-cura... Sobre dieta, ninguém ouviu mais uma palavra nos 600 km seguintes. Mas risadas, foram muitas.
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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