Rápido demais

Foi em meados dos anos 80 que definitivamente deixei a infância e entrei na adolescência. Morava na rua Manacá, na Vila Flores, e esperava meu pai chegar todas as tardes, para um rápido café antes de

21/12/2014 | Tempo de leitura: 4 min

“Não há cura para o nascimento e a morte, a não ser usufruir o intervalo”
George Santayana, filósofo e ensaísta espanhol


Foi em meados dos anos 80 que definitivamente deixei a infância e entrei na adolescência. Morava na rua Manacá, na Vila Flores, e esperava meu pai chegar todas as tardes, para um rápido café antes de voltar ao jornal, tentando adivinhar se ele surgiria pela Vitória Régia ou pela Diógenes Marconi. Quase sempre ele trazia juntoum pão italiano de casca dura, embrulhado em papel rosa, da Panificadora Pucci, e que era perfeito para comer com queijo Palmira e maionese; invariavelmente teria jornais sob o braço e, se desse sorte, um gibi do Tio Patinhas ou do Pato Donald para mim.

Nesta época, do alto dos meus dez anos de idade, achava um tanto quanto estranho que meus pais se referissem a eventos de décadas passadas em detalhes, como se tivessem ocorrido poucos dias antes. Papai, muito mais velho que minha mãe, contava como havia participado, em 1954, quando era um jovem repórter, da cobertura do suicídio de Getúlio Vargas, o mesmo sujeito que eu estudava nos livros de História. Por vezes, ambos recordavam, cada qual sob sua perspectiva, passagens do golpe militar de 64. Gostavam também de relembrar o impacto da chegada do homem à lua, em 1969, como se o feito de Neil Armstrong, Edwin Aldrin Jr. e Michael Collins fosse coisa de poucos dias.

Não raro, meu pai se emocionava e se enchia de saudades ao se lembrar do próprio pai, meu avô Thomaz, morto precocemente de ataque cardíaco naquilo que para mim era um inalcançável 1940 mas que, para ele, era “ontem” mesmo. Papai contava em detalhes como meu avô acompanhava os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial pelo rádio, no meio do nada, na fazenda Japão, em Itirapuã, onde moravam. “Passa rápido demais, Sônia”, costumava repetir.

Nada disso fazia muito sentido para quem, como eu, mal alcançara a primeira década de vida. “Ontem” era apenas o que tinha acontecido no dia anterior. Fim de semana demorava a passar e concentrava horas suficientes para brincar de tudo que se pudesse imaginar, com direito a repetições. Um mês era a própria eternidade. Plano para o ano seguinte era ideia absurda demais.

Todas essas lembranças e conexões me consumiram, na manhã deste sábado, num instante. Havia acordado, checado os e-mails, lido os jornais e, enquanto esperava minha mulher terminar de passar o café, resolvi dar uma olhada no Facebook. Ao abrir o aplicativo, fiquei paralisado. Uma conhecida havia feito um post orgulhoso comemorando uma importante conquista do seu filho. O rapaz, Felipe Barcellos, acaba de ser aprovado no vestibular para Medicina. O detalhe é que vi Felipe, filho de Magali e Luis Fernando Barcellos, nascer. Numa época em que convivia muito próximo deles, acompanhei seus primeiros passos e vi o bebê virar menino. Agora, o rapaz vai se tornar médico, como o pai. Fiquei atônito. Como passou tão depressa?

Uma coisa puxa outra, uma lembrança atrai outra nesta intricada teia de associações que só o cérebro é capaz de fazer. E foi assim que um post se transformou no catalisador de uma avalanche de conexões.

Assustado, recordei que Matheus e Ana Flávia Xavier, filhos do Geraldo e Dulce, amiga e companheira de décadas no Comércio, se formaram nesta semana. O menino é publicitário. A menina, bacharel em turismo. Ambos trabalham conosco no GCN e correm atrás de seus sonhos. Em breve vão constituir suas famílias e estarão cada vez mais distantes dos bebês que foram e que, também, vi nascer e crescer.

Pasmo, me lembrei dos meus colegas de Dinâmica Espiral, especialmente Danilo Chedid, com quem dividia o quarto nas excursões que a escola promovia. Estudamos a vida inteira juntos. Inclusive, em alguns cursos extras, como natação, que fazíamos no Tio Zezão. Sua mulher, Eduarda Gianecchini, era da sala do meu irmão, André. Casados, Danilo e Eduarda são pais da Catarina, a Cacá. Que, junto com meu filho, João, fizeram natação com o mesmo Tio Zezão, até sua morte, há poucos meses. No mesmíssimo lugar, três décadas depois.

Atônito, enfim assimilei que minha primogênita, Julia, presta vestibular já em 2015. Ficou para trás sua infância e, na esteira dela, a adolescência prepara sua despedida. Linda, inteligente, responsável, trilha com firmeza passos que a conduzem, cada vez mais rápido, rumo ao controle absoluto — até onde isso é possível, obviamente — da sua própria história.

Cazuza, poeta e cantor de enorme talento e sensibilidade, resumiu bem a questão em apenas uma estrofe de sua música O Tempo Não Para. “Eu vejo o futuro repetir o passado / Eu vejo um museu de grandes novidades / O tempo não para / Não para, não, não para”, cantou. Cazuza morreu precocemente, vítima da Aids, há um quarto de século. E já se vão dez anos que sinto saudades do meu pai.

A única coisa que nos resta a fazer é aproveitar a vida, essa dádiva tão bela quanto curta - e frágil, com a máxima intensidade possível. “Passa rápido demais”, ensinava, sabiamente, o meu pai. É a mais absoluta verdade. Feliz Natal!

PS: faltou dizer que a Roberta Rúbio, amiga de infância que também estudou comigo e com Danilo Chedid durante muitos anos e, portanto, tem a nossa idade, já é avó. Se alguém souber um jeito de pelo menos desacelerar o tempo, me avise. Simplesmente não estou pronto para ser avô. Não na próxima década.

Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN
email - jrneves@comerciodafranca.com.br 

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