Estamos mais tristes

Encontrei-me com um bom amigo psiquiatra no corredor do edifício em que se instala seu consultório. Cumprimentamo-nos e mantivemos

21/09/2014 | Tempo de leitura: 4 min

“Tudo passa - sofrimento, dor, sangue, fome, peste. A espada também passará, mas as estrelas ainda permanecerão quando as sombras de nossa presença e nossos feitos se tiverem desvanecido da Terra. Não há homem que não saiba disso. Por que então não voltamos nossos olhos para as estrelas? Por quê?”
Mikhail Bulgakov, escritor russo (1891-1940)
 
 
Encontrei-me com um bom amigo psiquiatra no corredor do edifício em que se instala seu consultório. Cumprimentamo-nos e mantivemos um breve bate-papo, ao final do que ele me falou:
 
- Passei boa parte da tarde de hoje prescrevendo medicamentos para ansiedade e pânico. Mais de cinquenta receitas. Definitivamente, as pessoas estão mais tristes!
 
Fiquei com aquele restinho de conversa na cabeça.
 
Com efeito: múltiplos são os fatores que têm levado as pessoas a um estado crítico de ansiedade e tristeza, ou depressão como dizem. Eu citaria, como um dos primeiros fatores, a hierarquização ou excessiva importância dada a inúmeros compromissos, pessoas e equipamentos, jogando lá para o vigésimo lugar, ou mais tardio ainda, o próprio eu. “Cadê eu?”, perguntaria o velho palestrante quando tange este assunto. “Cadê você nesta selva de consumismo, pressa e compromissos?”, perguntaria o psiquiatra, o psicanalista. 
 
Você já percebeu que temos priorizado muita coisa antes de nos preocuparmos conosco mesmos? O cônjuge, a família, o trabalho, os carnês por quitar, a viagem de negócios, o bate-volta de ônibus ou avião, o relatório por fazer e entregar “para ontem”, a competição por um espaço no mercado de trabalho, o bombardeamento de informações, a globalização de tudo que nos rodeia, o celular que tudo contém e nada diz ao meu espírito, a falta de espiritualidade... De forma que quando sobra um tempinho, lá vou eu cuidar de mim próprio, ou numa academia, ou numa caminhada, ou num cabeleireiro, ou numa sessão de massoterapia, ou num templo religioso, ou numa viagem de lazer, ou o que queira pensar.
 
É óbvio, não cito aqui os abastados de tempo e dinheiro. A vida lhes sorriu e abriu-lhes as portas da bonança, da fartura e da felicidade. As viagens de lazer lhes são rotineiras, as conversas amenas os tornam pessoas amáveis, bonachonas, geralmente praticam a caridade como moeda de troca com os eflúvios celestiais, praticam algum hobby delicado e primoroso e conseguem, como quem consegue, num transatlântico de luxo, atravessar indiferente por sobre as tristezas da vida. Felizes eles! Talvez sejam abençoados. 
 
Meu foco é outro: o cidadão funcionário cujo salário mensal apresenta invariavelmente uma conta vermelha no final de 30 dias, o chefe de família que há de resolver problemas internos e viscerais domésticos, aquela pessoa talhada para realizar as mais complexas tarefas na empresa em que trabalha para depois sumir no cinzento ambiente dos bastidores, enquanto algum inútil superior leva a fama e a foto numa revista que insiste em premiar a meritocracia em troca de polpudas somas, e não pelo mérito em si. Não falo do desassistido social completo - este é o extremo e, geralmente, a ansiedade não visita os extremos, mas o meio. 
 
Expondo este argumento, meu bom amigo psiquiatra contrariou-me, dizendo que assim pensando ou analisando, estaria apontando só para um foco: o capitalismo feroz - quem está dentro livra-se das famosas tarjas pretas, quem está à margem ou fora da capacidade real de livre consumo chafurda-se na lama da depressão, em face do esforço que empenha pela TV de não sei quantas polegadas. Não, definitivamente este fator é banal e não explica, com clareza, o que gera tanta tristeza e ansiedade que só faz aumentar entre as pessoas da sociedade contemporânea.
 
Perguntei-lhe:
 
- Um matuto longe da sociedade e rodeado pela natureza pura pode sofrer de depressão?
 
- É claro - respondeu-me ele -, não só o matuto como também uma criança. O fato é que estamos mais tristes, as pessoas estão mais tristes. Talvez se traçássemos alguns perfis do tempo de hoje, comparando-os com algumas décadas passadas, poderíamos perceber alguns desenhos de fatos que nos levam a esse estado de espírito.
 
Pensei, num átimo, como a profissão de psiquiatra e de psicólogo deve andar rendendo nos dias de hoje. Mas isto é outra história.
 
Dando aula de Latim a um grupo de religiosos e pondo esta questão em debate, disseram-me alguns: “Terapia e medicação são os tratamentos mais acessíveis para a depressão, mas outro sistema tem ajudado muitas pessoas a lidar com a tristeza: a fé”.
 
Com efeito, podemos imaginar que a consciência humana é ligada pelos lados de um triângulo: o teológico, o psicológico e o biológico. Mas é enormemente difícil escrever sobre fé porque ela lida com o incognoscível e indescritível. Além disso, a fé no mundo moderno tende a ser altamente pessoal.
 
Mas... Poderia ser falta de espiritualidade? Simples assim?
 
O assunto está apenas começando; pena que chegamos a um ponto intransponível: o simples e tangível espaço de jornal. 
 
Everton de Paula, acadêmico e editor 
email - evertondepaula33@yahoo.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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