Ressurreição

Algumas semanas antes, Valdick chegara a passar quatro dias e noites, ininterruptos, fumando crack.

18/05/2014 | Tempo de leitura: 5 min

“Por entre pessoas de passos apressados / Eu caminho lentamente / Por entre o frio e a escuridão da noite/ Eu caminho lentamente / Por entre as ruas e o duro concreto dos prédios / Eu caminho lentamente / Até mesmo por entre crianças, felizes a brincar em praças / Eu caminho lentamente / Por entre os meus sonhos e os meus pensamentos / Lentamente eu percebo/ que não posso parar de caminhar.”
Arsênio Teodoro, poeta e “sobrevivente”
 
 
Era terça-feira, 3 de julho de 2007. Valdick, 33 anos, um viciado do tipo que chegou ao fundo do poço, vagava naquela manhã como um zumbi. Estava próximo do cemitério Santo Agostinho e pretendia seguir até o Distrito Industrial. Perto do Shopping do Calçado, viu uma mulher atirar um ‘quimba’ de cigarro no chão. Imediatamente, abaixou-se, recolheu o toco de cigarro, sentou-se na sarjeta e começou a fumar. A mulher o repreendeu. “Isso não é coisa que se faça.” Uma outra senhora foi mais incisiva. “Deixa para lá. Isso não é gente.”
 
Algumas semanas antes, Valdick chegara a passar quatro dias e noites, ininterruptos, fumando crack. No dia anterior, usara a sua última parcela do seguro-desemprego, de R$ 380, para comprar as malditas pedras. Sua mulher e filha tinham se mudado de Franca dois anos antes. O pai de Valdick não falava com ele há décadas. A mãe era o seu único refúgio. Apesar de tê-la roubado e decepcionado, mãe é mãe.
 
Valdick olhou para cima e concordou com a mulher. Sim, ele não era gente. Valdick não era nada. O que tinha sido se perdera entre uma cachimbada e outra de pedra. Se não conseguisse reagir naquele instante, morreria. Valdick levantou-se. Por uma razão qualquer, lembrou-se da rádio Difusora. Em vez de caminhar para o Distrito Industrial, seguiu para a rádio Difusora. Queria contar sua história ao Marcelo Valim. Queria também pedir ajuda. 
 
O drama foi narrado no programa Realidade da Vida na tarde do mesmo dia. “O crack é o fim. Quero voltar a ser o homem que eu sou de verdade”, dizia Valdick. Ele detalhou sua rotina nas bocas de fumo, o receio de ficar sem droga, a vergonha de usar dinheiro da mãe para pagar traficante. Valdick também sonhava com o dia em que reconquistaria a mulher. “Espero que ela, um dia, olhe para mim e veja um homem”, dizia.
 
Muita gente se emocionou com a história. O deputado estadual Gilson de Souza (DEM) foi uma delas. Terminado o programa, ele nos ligou. Disse que arrumaria vaga numa clínica para o rapaz. Incumbiu seu então assessor, Marcelo Silva, de tomar as providências necessárias. Nunca mais ouvi falar do Valdick.
 
Sete anos se passaram. Na última quinta-feira, tinha uma reunião em São Joaquim da Barra. Marcelo Silva, que me auxilia em alguns projetos, estava comigo. Já tínhamos avançado uns 20 km na rodovia Fábio Talarico quando ele perguntou se eu me lembrava da história do Valdick. Após um longo hiato sem contato, ambos tinham voltado a se falar e Valdick queria me encontrar. Concordei. 
 
Meia hora depois entramos num canavial, cortado por um discreto caminho de terra. Poucos quilômetros depois, entrávamos na comunidade terapêutica Renascer para a Vida no Cerea. Fomos recebidos por um pequeno grupo de homens. Um deles, muito emocionado, não continha as lágrimas. Agradecia a ajuda da rádio, chorava, nos abraçava. Se apresentou. “Oi, sou o Arsênio.”
 
Arsênio é Valdick, pseudônimo ao qual recorremos em 2007 para preservar sua identidade. Desde aquela terça-feira de um julho já distante, a vida de Arsênio mudou muito. Foi no entardecer, debaixo de uma árvore na modesta gleba onde está instalada a comunidade terapêutica, que Arsênio nos contou seu périplo. No Narev, completou o ciclo de tratamento. Foram nove meses duros. Mais difícil que a privação das drogas, segundo ele, foi o confronto inevitável com o pária em que havia se transformado. 
 
Depois, Arsênio foi para outra comunidade terapêutica da região, onde foi treinado para se transformar em coordenador de instituições para dependentes químicos. E, então, acabou em São Joaquim, onde devota dias e noites para transformar as histórias de outros tantos Valdicks que, muitas vezes, tem numa comunidade dessas sua última chance de redenção.
 
Sóbrio há oito anos, Arsênio conseguiu resgatar sua família com muita força de vontade e orações. O pai, com quem estava rompido, é hoje seu grande amigo. A mãe, presença constante na comunidade, está orgulhosa do homem em que seu filho se transformou. Reconquistou também sua mulher e a filha, uma linda menina de 14 anos. É tanto amor que o casal teve gêmeos. Moram todos juntos em São Joaquim.
 
Dizer que Arsênio se salvou é pouco. Arsênio ressuscitou. Não precisou para isso de programas governamentais que despejam toneladas de dinheiro em estratégias de eficácia para lá de duvidosa, como o Centro Pop. A própria comunidade onde trabalha é prova de que com pouco é possível fazer muito. A única ajuda do Estado que recebem não ultrapassa R$ 1,5 mil por mês - no total, não por paciente. O resto vem de doações. Hoje, há nove “residentes” em tratamento, além de três coordenadores e Silmara, um anjo disfarçado de enfermeira. Todos, com exceção de Silmara, são ex-dependentes químicos. Todos, também, trabalham no local. Imagine o quanto poderiam fazer se o Estado fosse menos obtuso e um pouco mais pragmático.
 
Era uma noite de luar linda quando deixamos a Cerea. Enquanto nos despedíamos, não conseguia deixar de lembrar de uma poesia escrita por Arsênio e que ele havia recitado pouco antes. Está transcrita ao lado. É um tributo à coragem, à superação, e à incrível capacidade humana de, sob certas circunstâncias, se redefinir. Arsênio Teodoro, um homem exemplar que um dia já foi o deprimente viciado Valdick, está aí para quem duvidar. 
 
PS: o telefone do Arsênio é 99170-2091. Ligue se puder ajudar. Ligue também se precisar de ajuda. Eles têm vagas.
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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