O 'sapo' na Cabana; um salto e tanto nos últimos 33 verões

Os anos 80 ainda estavam começando naquele verão de 1981. Franca, pouco mais de 150 mil habitantes, era governada por Maurício Sandoval

02/02/2014 | Tempo de leitura: 4 min

‘Viver significa lutar’
Sêneca, filósofo grego
 
Os anos 80 ainda estavam começando naquele verão de 1981. Franca, pouco mais de 150 mil habitantes, era governada por Maurício Sandoval. O porrete já não era o principal argumento do regime militar, mas a democracia ainda era sonho. Quem dava as cartas era o general João Batista de Oliveira Figueiredo, homem de modos rudes que, numa comparação direta, faria Fred Flintstone parecer um gentleman. ‘Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo’, costumava dizer o carrancudo presidente.
 
Naquele tempo só se votava para prefeito em cidades do interior, vereador, deputados e alguns senadores. Os prefeitos das capitais, parte dos senadores, governadores de Estado e o presidente da República eram indicados pelo regime militar, sem que tivessem que se submeter à vontade do povo. Foi por esta via que Paulo Maluf tornou-se governador paulista. Era ele quem se sentava na principal cadeira do Palácio dos Bandeirantes naquele verão de 1981.
 
Cerca de um ano antes, em 10 de fevereiro de 1980, um grupo de sindicalistas, intelectuais e opositores do regime militar beneficiados pela ‘Lei da Anistia’, de 1979, haviam se reunido no colégio Sion, na capital Paulista, para fundar um novo partido político. Nascia o PT, liderado desde o parto por Luiz Inácio Lula da Silva.
 
Ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula havia ganhado projeção nacional ao comandar, durante o regime de exceção, a ruidosa greve por melhores salários na montadora Scania, em 1978, e que resultaria em sua prisão. Livre da jaula, engajou-se na construção de um partido de oposição que pudesse disputar as eleições de 1982, quando os brasileiros retomariam o direito de livremente escolher seus governadores, os prefeitos de capitais e os senadores da República, através do voto.
 
Era um domingo, 15 de março, quando Lula veio a Franca falar sobre suas ideias. Tinha 36 anos e, fisicamente, ainda era o ‘sapo barbudo’ que horrorizava o establishment, roupas mal-ajambradas e jeito tosco. Em nada antecipava o ‘Lulinha paz-e-amor’, barba aparada e ternos ‘Ricardo Almeida’ milimetricamente cortados, com os quais, duas décadas depois, subiria a rampa do Palácio do Planalto.
 
Pontual, Lula chegou de carro a Franca às 10h. Parou na entrada da cidade para encontrar ‘companheiros’ e, dali, seguiram todos para a Cabana de São Benedito, onde centenas de pessoas o esperavam. Depois do sindicalista Geraldo Nobre e do presidente da comissão provisória do PT em Franca, Fábio Cândido, Lula discursou. Começou a falar às 11h30 e seguiu, com disposição, por uma hora. Pediu a quem o ouvia que tivesse coragem para participar da vida pública brasileira, admitiu a possibilidade de novas greves no ABC se as montadoras se recusassem a negociar ganhos salariais e narrou detalhes de sua passagem pelo cárcere. Projetou ainda um bom resultado eleitoral para o PT na disputa de 82 - o que, registre-se, não aconteceu. 
 
O Comércio da Franca registrou a visita em suas edições de 15 e 17 de março de 1981. Noticiou a vinda de Lula, acompanhou a concentração popular e os discursos, o entrevistou e publicou tudo acompanhado de fotos. O que ninguém sabia e só agora se descobriu é que Lula e seus assessores não estavam sozinhos quando vieram a Franca. Documentos obtidos por pesquisadores da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, revelam que a ditadura monitorava mais de perto do que se supunha os movimentos dos principais opositores ao regime, mesmo no início da década de 80, quando os anos de chumbo já tinham ficado para trás. 
 
Discursos e reuniões com a participação de Lula eram gravados, fotografias feitas, relatórios produzidos. Cada passo do ‘inimigo’ era seguido de perto. Tão de perto que, naquele março de 1981, os arapongas tiveram condições de registrar que, na visita a Franca, Lula veio num Opala, seguido por um Fusca amarelo ocupado por ‘três desocupados com características de hippies’. O que ele disse por aqui não preocupou. Os espiões registraram em seus relatórios que o discurso do presidente nacional do PT foi ‘comedido’ e que não houve ataques pessoais ‘às autoridades constituídas’, conforme noticiou esta semana a coluna ‘Painel’, da Folha de S. Paulo.
 
Há trinta e cinco anos, pensar diferente do governo, reunir algumas pessoas e fazer um discurso era razão suficiente para que agentes a serviço do Estado acompanhassem, fotografassem e reportassem o que era dito. Hoje, pode-se chamar o prefeito de incompetente, criticar o governador do Estado, protestar contra nossos deputados, reclamar do Judiciário, atacar posições dos ministros da Corte Suprema, parodiar a presidente da República e, ainda assim, não sofrer coação de ninguém. Exceção feita às ofensas ou falsa imputação de crimes, o fato absolutamente relevante é que os tribunais brasileiros têm garantido o direito de crítica, pilar de qualquer democracia, independente de quem seja seu autor, não importa qual seja o criticado. 
 
É um imenso avanço, fundamental para qualquer outro que uma nação livre pretende atingir. O ‘sapo barbudo’ chegou à presidência da República pelo voto popular, o general que governou com a força foi esquecido pelo povo, e por maiores que sejam as crises, não há hoje ninguém louco o bastante para propor uma alternativa que fuja da via democrática. Há problemas sérios, mas, pelo menos, o país não está na contramão da história. Foi um salto e tanto nestes 33 verões. Não é pouca coisa.
 
Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN 
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.