O relógio e o ‘cadran’

Se é fato que não existe outro relógio do Sol ‘gêmeo’ ao de Franca em Annecy, também é verdade que detalhes merecem ser pesquisados.

03/11/2013 | Tempo de leitura: 5 min

‘A História é a versão dos eventos passados sobre os quais as pessoas decidiram concordar’
Napoleão Bonaparte,
imperador francês

Gosto de organizar minhas viagens. Adoro pesquisar os lugares que pretendo conhecer, traçar o roteiro, reservar os hotéis, checar restaurantes, programar museus e visitas a lugares históricos. Como gosto de dirigir sempre que viajo, alugar um carro proporciona liberdade extra - dá para incluir paradas em lugares menos conhecidos, que dificilmente são programados pelas grandes operadoras de turismo. Dá trabalho e exige dedicação, mas é muito compensador.

Foi assim que, ao partir para a Europa no inicio de outubro com minha família, já tinha tudo certo para uma parada estratégica que pretendia fazer. Meses antes, ao pesquisar os mapas para entender por onde passaria no trecho de carro entre Paris e Roma (com várias paradas, bem entendido), me deparei com uma pequena cidade na fronteira da França com a Suíça: Annecy. Imediatamente me recordei das muitas histórias sobre um dos maiores orgulhos de qualquer francano, o Relógio do Sol, cravado no centro da cidade. Obviamente, me veio à cabeça a figura de Frei Germano de Annecy, o missionário capuchinho francês que, na sua passagem por Franca, construiu o relógio que, além de maravilha das ciências, é também símbolo da cidade. Como seu nome indicava, Germano era de Annecy. E, diziam as histórias sobre o nosso relógio do Sol, era lá que estaria o ‘original’. O de Franca seria uma réplica. Decidi então que passaria por Annecy para conferir tudo de perto.

Chegamos a Annecy na terça-feira, 15 de outubro. Desde Lyon, de onde partimos, foram 154 quilômetros, vencidos sem pressa em pouco mais de 2h30. O vento gelado que atravessa os Alpes rasga a pequena Annecy. Garoava e fazia 7 graus às 13h30, mas a sensação térmica era bem mais baixa. Difícil não bater o queixo por ali - mesmo para mim, que tenho o orgulho besta de não sentir frio quase nunca. A cidade é linda - e charmosíssima. Fica à beira do lago de Annecy, com águas turquesa claríssimas que, imagino, devem ser um desbunde no verão. Cortada por canais, Annecy é também conhecida como ‘a Veneza dos Alpes’. A comparação é exagerada, mas a cidade é um primor.

Foi ali, na beira do lago, na ‘Quai Napoleon III’, embarcadouro que margeia uma idílica praça adjacente a um boulevar com bares e restaurantes, que encontramos a ‘matriz’ do nosso relógio do Sol. Um lembra o outro, mas nada tem de réplica. Fossem parentes, seriam primos distantes. Nunca, irmãos. Muito menos, gêmeos. É claro que, essencialmente, cumprem a mesma função. O de Annecy, em forma de estrela na sua parte superior (ao contrário do nosso, que é esférico), além das horas no verão e no inverno (em distintas faces), indica também os fusos (mostra os horários em São Petersburgo, Viena, Roma, Paris, Londres e Lisboa) e, ainda, o zodíaco (a que signo corresponde aquele dia no ano).

Na base do relógio do sol - ou cadran solaire, como dizem por lá - de Annecy, uma placa traz algumas poucas informações. O instrumento foi construído a partir de 1874 por Jean-Marie Dumurgier, nome de batismo do frei Arsène. Inaugurado em 1876, foi chamado de ‘L’unique’ (Único, em português), provavelmente por sua complexidade. Assim como no próprio cadran, também no portal oficial de Annecy na internet não há qualquer referência a Franca ou a Frei Germano - só, ao relógio de Arsène.

Na cidade, aparentemente, ninguém dá grande importância para o ‘L’unique’. Foi preciso perguntar para três pessoas até que uma delas indicasse onde ficava o relógio. Quem nos ajudou foi o proprietário do ‘La Galejade’, delicioso restaurante onde almoçamos. Ainda assim, tudo que ele sabia dizer era onde ficava o cadran - o que, registre-se, era bem fácil para ele. O relógio fica a cem passos do ‘La Galejade’.

Se é fato que não existe outro relógio do Sol ‘gêmeo’ ao de Franca em Annecy, também é verdade que há muitos detalhes que merecem ser pesquisados. Arsène e Germano foram contemporâneos - e conterrâneos. O primeiro nasceu em 1809; o segundo, em 1822. Ambos se tornaram frades capuchinhos. O relógio de Sol de Franca foi inaugurado em 1886, apenas dez anos depois do ‘L’Unique’ de Annecy. Consideradas as distâncias, as dificuldades de comunicação e de transporte, é altamente improvável que um tenha servido de inspiração para o outro. Afinal, Germano chegou ao Chile, vindo da Europa, em 1851 - portanto, 25 anos antes de ‘L’Unique’ começar a ser construído. No Brasil, desembarcou em 1858. E para a Europa, nunca mais retornou. Ele morreria no mar, na costa da Bahia, em 1890, quando tentava voltar para sua terra natal. Assim, resta óbvio que Germano jamais viu o relógio de Annecy de perto.

Há uma história que precisa ser revista. Diferente do que nos habituamos a acreditar com base naquilo que nos é ensinado há décadas, o relógio de Sol de Franca não é réplica de outro existente em Annecy. Sabe-se que dois religiosos, Arsène e Germano, decidiram construir, por alguma razão, dois instrumentos complexos de medir as horas mais ou menos ao mesmo tempo, no último quarto do século XIX, a milhares de quilômetros um do outro. Quem os inspirou e que conexões existiam entre ambos é um grande mistério - e uma excelente tese para qualquer pesquisador dedicado. Esta é uma história que precisa ser recontada. Desta vez, de forma correta e precisa.

Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

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