A hipocrisia oficial

Nunca acreditei no SUS, o Sistema Único de Saúde, ‘jabuticaba’ com a qual os políticos tupiniquins iludem há anos os brasileiros.

15/09/2013 | Tempo de leitura: 4 min

‘Esta é a mais dolorosa de todas as doenças humanas: dispor de todo o conhecimento e ainda não ter nenhum poder de ação’
Heródoto, historiador grego

Nunca acreditei no SUS, o Sistema Único de Saúde, ‘jabuticaba’ com a qual os políticos tupiniquins iludem há anos os brasileiros com a promessa de um atendimento público, universal e gratuito. É um delírio. A Constitução manda oferecer atendimento a todo mundo, o governo faz de conta que obedece e boa parte da população finge que acredita. Mas há instantes em que o tamanho do engodo fica mais evidente, como num absurdo eclodido em Franca na última semana.

Difícil encontrar quem não tenha acompanhado o drama da francana Ana Laura, morta em abril deste ano em decorrência de uma agressiva leucemia enquanto esperava por um doador de medula óssea. A história, tocante, inspirou o vereador Adérmis Marini (PSDB) a propor e aprovar a ‘Lei Ana Laura’, que cria uma semana de incentivo à doação. Diferente de outros casos, a doação de medula é feita inter-vivos e a compatibilidade do órgão é estabelecida a partir dos exames de sangue. Quanto mais doadores, maior a chance de se encontrar alguém compatível.

A ideia, tão boa quanto simples, é capaz de aumentar significativamente as chances de sobrevivência para quem está com a vida por um fio. Ou, pelo menos, seria. Era nisso que todo mundo acreditava até o início desta semana. Foi quando o drama de uma outra francana, Carolina Parzewski, vítima de uma leucemia e que também precisa de um transplante de medula, tornou-se público e expôs um absurdo difícilimo de engolir e impossível de aceitar.

Carolina tem 36 anos, é advogada, casada e tem um filho de dez anos. Luta, com todas as forças, contra uma leucemia mielóide aguda. Como parte do tratamento, vai precisar, num prazo máximo que pode variar de três a cinco meses, de uma nova medula óssea. Encontrar um doador compatível rapidamente é crucial. Sua família e amigos, inspirados no exemplo de Ana Laura, começaram uma campanha para atrair doadores. Foram bem-sucedidos. Ou quase.

Muita gente, sensibilizada com a história, foi doar sangue para os testes de compatibilidade. Ao chegar ao hemocentro, uma desgradável - e quase inacreditável - surpresa: Franca não estava mais ‘captando material’. A explicação, crudelíssima, é um primor de absurdo: uma resolução do governo federal estabeleceu um limite no número de cadastros de doadores. No caso de Franca, são 200 por mês. Se toda a cidade quiser doar, estará impedida por obra e graça do governo federal.

A tal resolução é relativamente nova e quase desconhecida. Foi assinada no dia 2 de maio do ano passado por Alexandre Padilha (PT), ministro da Saúde. Batizada de ‘Portaria Nº 844’, o documento ‘estabelece a manutenção regulada do número de doadores no Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME)’. Depois de uma série de citações a legislações específicas e de patacoadas - como o trecho que determina que campanhas de doação de medula terão que ser previamente autorizadas pelos órgãos competentes - o Anexo I vem com um quadro medonho. Ali, define-se para cada Unidade da Federação quantos doadores poderão ser captados por ano.

Ao Acre, reservam-se 70 captações de material e nenhuma a mais. Sergipe está autorizado a incluir 680 doadores anuais. O Maranhão pode cadastrar 860. Rio de Janeiro, 14.040. Minas Gerais, 30.800. São Paulo, 72.110. Deste total, 1.800 captações/mês podem ser feitas na região de Ribeirão Preto. Cerca de 200 delas, no hemocentro de Franca. Mas é no Anexo II, que trata das especificações de nomenclatura e códigos para o correto lançamento da operação no sistema de saúde, que se encontra a mais provável resposta para o limite: dinheiro. Por cada teste de compatibilidade, o governo paga R$ 375. Quanto mais doadores houver, mais cara a fatura.

É uma afronta. O governo que promete saúde universal, gratuita e de qualidade coloca um limitador artifical nas chances de sobrevivência de quem precisa correr atrás de um doador de medula. Uma coisa é não encontrar doador, outra muito diferente é rejeitar testar a compatibilidade de quem deseja ajudar. É como se, numa loteria, você só pudesse disputar o prêmio principal com um único bilhete. Se não vierem os seus números, azar o seu. A diferença é que aqueles que precisam de uma medula não querem dinheiro. Querem viver.

Nada mais hipócrita do que um governo que promete saúde para todos limitar, por questões orçamentárias, as chances de quem depende de um transplante. Um Estado que diz garantir a vida de todos age como um frio carrasco, estabelecendo a partir de uma maldita planilha no anexo de uma portaria as probabilidades de sobrevivência de quem aguarda um transplante de medula.

Se enfrentar um câncer já é missão difícilima para qualquer um, ter que correr atrás de alguém geneticamente compatível e que voluntariamente deseje doar uma parte de si é tarefa quase sobre-humana. Exige força e coragem incomuns. Tudo que essas pessoas precisam é de apoio, carinho, tratamento adequado e muita sorte para encontrar um doador compatível.

Que ninguém venha limitar quantas pessoas podem ser cadastradas. Não é eticamente justo nem moralmente aceitável para mim, para você, para a presidente da República, para Carolina Parzewski ou para qualquer outro. Que a Justiça dê uma resposta adequada - e rápida. Para Carolina e outros tantos, o tempo corre ainda mais depressa.

Corrêa Neves Júnior, diretor executivo do GCN
email - jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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