Vidas em liquidação

qui em Franca, dependendo do conjunto de pessoas designadas para julgar o caso, uma vida pode valer muito pouco.

18/08/2013 | Tempo de leitura: 4 min

“Todos os dias, nós, brasileiros, recolhemos uma quantidade enorme de mortos dos asfaltos. Isso tem que mudar” - Christiane Yared, brasileira, mãe de uma vítima do trânsito

Quanto vale uma vida? Independente de quem seja o inquirido e quaisquer sejam suas convicções religiosas, sua inclinação ideológica, o estado civil, o grau de instrução, o gênero, a orientação sexual ou o país onde nasceu, é quase certo que a resposta será óbvia - e única: vida nenhuma tem preço.

Mesmo assim, a realidade teima em nos esfregar na cara quão risíveis podem ser os parâmetros fixados pelos homens para punir alguém que ceifa a vida de um semelhante. Aqui em Franca, dependendo do conjunto de pessoas designadas para julgar o caso, uma vida pode valer muito pouco. Tão pouco que nos faz pensar que uma existência estupidamente interrompida pode ser tristemente equiparada à ‘bagatela’ de uma mórbida liquidação. Foi isso que aconteceu com Jonathas Pezarezi, um jovem trabalhador, morto aos 26 anos na manhã de 6 de fevereiro de 2012.

Jonathas era policial militar. Natural de Ribeirão Preto, estava em Franca havia dois meses. Na manhã daquela segunda-feira o PM Pezarezi participava de uma fiscalização de rotina na rodovia Ronan Rocha, que liga Franca a Patrocínio Paulista. A blitz estava montada no Km 27. Foi ali que, por volta de 11h, Jonathas fez sinal para que um Voyage marrom parasse. Foi seu último ato consciente.

O Voyage não parou. Na direção estava Thiago Veiga, 23 anos. O rapaz, que não tinha habilitação, atropelou Jonathas Pezarezi. Com o impacto, o corpo do policial foi arremessado a quinze metros de distância. Além de inabilitado, Thiago tinha medo. Foi isso que ele disse para justificar porque não parou. O motorista que havia acabado de atropelar um PM simplesmente fugiu do local sem prestar qualquer socorro. Deixou para trás sua vítima estirada no chão, abandonou o carro a 9 km do local do acidente e desapareceu. O PM Pezarezi chegou a ser socorrido, mas não resistiu. Três horas depois, estava morto.

O medo sobrava em Thiago Veiga na mesma medida em que lhe faltava consciência. Nem mesmo o fato de ter atropelado e fugido fez com que se apresentasse espontaneamente às autoridades policiais. Ele só se entregou depois que a polícia encontrou o seu carro, o identificou como proprietário e localizou a casa onde morava. Preso, ganhou tempos depois o direito de responder pelos seus atos em liberdade.

Dezoito meses se passaram até que Thiago Veiga fosse levado a julgamento. O atropelador foi denunciado por homicídio doloso, circunstância que indica que ele tinha intenção de matar. Afinal, parece óbvio que quem dirige sem habilitação, atropela e foge sem prestar socorro está assumindo o risco de tirar a vida de um inocente. Na última quinta-feira, 15 de agosto, ele sentou-se no banco dos réus do Tribunal do Júri. Saiu de lá livre.

Apesar de todas as evidências e circunstâncias, do bom trabalho da polícia civil na fase de inquérito e da dedicada atuação do promotor Odilon Comodaro, os jurados entenderam que Thiago Veiga não tinha intenção de matar. Assim, seu crime foi atenuado para homicídio culposo. Consequência óbvia, as penas são muito mais brandas e as multas aplicáveis bem menos severas.

A decisão dos jurados é soberana. Mesmo que quisesse ou desejasse, o juiz não poderia fazer diferente do que fez. Diz o parágrafo 30 do artigo 121 do Código Penal que a pena aplicável a autor de homicídio culposo é detenção pelo período mínimo de um ano e máximo de três anos, sempre em regime aberto ou semi-aberto. O magistrado aplicou a pena máxima prevista na lei: três anos, convertida em prestação de serviços comunitários. Quanto à multa, a conclusão é a mesma. O valor fixado, de R$ 6,7 mil reais, está dentro da média arbitrada para casos semelhantes. Ridículo, diante do que se vê como resultado de qualquer ação trabalhista ou indenizatória, mas no padrão do que é fixado quando se trata da esfera criminal. Por fim, Thiago Veiga fica proibido de dirigir por dois anos. É só. De resto, pode fazer o que quiser.

Thiago Veiga poderá em breve voltar a dirigir. Quando tiver completado 26 anos, exatamente a mesma idade que tinha o policial que ele atropelou e matou, Thiago poderá ter conquistado o direito de trafegar com seu veículo. Poderá dirigir pelas rodovias, retomar sua vida de pespontador, continuar com seus sonhos e ambições. Nenhuma destas opções resta, por razões óbvias, ao PM Jonathas Pezarezi e sua família. É um baita contrasenso.

Morrem no Brasil, a cada ano, 60 mil pessoas vítimas de acidentes de trânsito. É um número assombroso, superior ao total de perdas de vidas em muitas zonas conflagradas, como a Guerra civil na Síria, a Guerra do Iraque ou a Invasão do Afeganistão. Outras 350 mil pessoas ficam inválidas - mutiladas, estraçalhadas ou arrebentadas pela imprudência, negligência, irresponsabilidade e covardia dos maus motoristas. É um saldo sinistro.

A mudança possível só virá com leis muito mais rígidas, acompanhadas de doses intensas de fiscalização e, também, de menos compaixão por parte dos jurados encarregados de estabelecer a culpa de quem mata no trânsito. Enquanto houver motoristas-assassinos que saiam livres como aconteceu com Thiago Veiga, seremos obrigados a lamentar e sofrer com muitos outros Jonathas Parizi dentro de seus caixões. Um policial militar de 26 anos cuja vida, interrompida estupidamente enquanto trabalhava, valeu míseros R$ 6,7 mil. Patético. Frustrante. E revoltante.

Corrêa Neves Jr.
jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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