O excomungado

A sociedade brasileira vem passando, nos últimos 20 anos, por uma transformação nada discreta num de seus cânones mais fundamentais.

19/05/2013 | Tempo de leitura: 5 min

Padre Beto é apenas um liberal que não está alheio aos comportamentos de seu rebanho e que, compreensivelmente, procura assimilar as mudanças em curso
Padre Beto é apenas um liberal que não está alheio aos comportamentos de seu rebanho e que, compreensivelmente, procura assimilar as mudanças em curso

‘Só achamos que as outras pessoas têm bom senso quando são da nossa opinião’
La Rochefoucauld,
escritor francês


A sociedade brasileira vem passando, nos últimos 20 anos, por uma transformação nada discreta num de seus cânones mais fundamentais: a religiosidade. Se é fato que o Brasil ainda concentra o maior número de seguidores da ‘Igreja de Roma’ no mundo, também é fato que num horizonte relativamente curto, de no máximo 30 anos, o número de brasileiros evangélicos e católicos será o mesmo.

Os números falam por si. Dados do Censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que hoje há 64,6% de católicos no país e 22,2% de evangélicos. Em 1970, o número de católicos chegava a 91,8% da população, enquanto os evangélicos eram apenas 5,2% do total de brasileiros. A taxa de conversão é direta. Quase sempre, um neo-evangélico é um ex-católico.

Há teses interessantíssimas que tentam explicar o fenômeno, mas nem é preciso grande curiosidade intelectual para se constatar o que a realidade impõe: a Igreja Católica encontra enormes dificuldades para afinar seu discurso e suas ações aos tempos atuais. Insiste em aplicar códigos seculares - e absolutamente ultrapassados - para resolver dilemas cotidianos, se mostra refratária ao diálogo por mais que diga o contrário e pune a discordância com rigor incompreensível, tudo isso enquanto se mostra leniente com relação aos seus membros que cometem crimes capazes de fazer qualquer pessoa com mínimos princípios morais arrepiar até o último fio de cabelo.

Dois casos, que se relacionam direta ou indiretamente com Franca, são bons exemplos de como a balança da Igreja varia de acordo com as circunstâncias. No primeiro, têm-se o Padre Dé e os abusos sexuais cometidos contra menores de Franca, que resultaram numa condenação, pela Justiça, à pena de mais de 60 anos de cadeia, e a nenhuma ação efetiva da Igreja para banir de seus quadros alguém com tais predicados; no segundo e mais recente, há a decisão do bispo de Bauru, Dom Caetano Ferrari - que foi também bispo-coadjutor aqui na terra das Três Colinas - de expulsar, com todas as desonras possíveis, o padre Roberto Daniel. Seu crime? Dizer o que pensa.

Roberto Daniel, ou padre Beto, como é mais conhecido, está longe de ser um religioso conservador, mas tampouco pode ser tachado de revolucionário. Não há em suas pregações incitação a um cisma, ataques ao Papa, uma nova proposta de culto, postulações dogmáticas inovadoras ou coisas do gênero. Padre Beto é apenas um liberal como tantos outros, que não está alheio a comportamentos que são práticas ordinárias de seu rebanho e que, compreensivelmente, procura assimilar as mudanças em curso. O que faz padre Beto singular é o fato de ter cometido o ‘pecado’, pelo menos aos olhos da Igreja, de dizer o que pensa. A reação foi imediata - e violenta. Padre Beto foi excomungado.

Mas, afinal, o que de tão terrível disse padre Beto? Para começar, ele defende o sexo como fonte de prazer, e não apenas para reprodução, como insistem em sustentar os religiosos conservadores. Também acredita que as relações sexuais antes do casamento nada têm de pecaminosas. Pelo contrário, são vistas por ele como fundamentais para que os namorados criem intimidade e cheguem ao matrimônio mais conscientes de sua escolha.

Um pouco mais excêntrica é sua opinião sobre fidelidade. Ele diz, por exemplo, que a bissexualidade é possível e que, neste caso - de alguém se relacionar com um homem e uma mulher ao mesmo tempo - não há problemas se houver consentimento. Quanto aos gays, defende que se trata de um amor como outro qualquer e que não há razão para que a Igreja não os acolha plenamente. ‘Todas essas pessoas são amadas por Deus, são filhas e filhos de Deus e merecem ser felizes dentro da sua sexualidade humana’, sustenta.

Tudo o que padre Beto fez foi defender seus pontos de vista, nada muito diferente do que fazem alguns cardeais, especialmente alemães, italianos e franceses, em textos publicados mundo afora. Padre Beto não foi flagrado numa orgia, não realizou casamento de homossexuais nem renegou o celibato. Ainda assim, foi intimado a recuar e a desdizer o que havia dito. Como se negou, foi excomungado. Não apenas não pode mais celebrar missas como está também proibido de receber a eucaristia.

Difícil explicar como alguém pode ser duramente penalizado apenas por dizer o que pensa, como o padre Beto, enquanto um criminoso do naipe de padre Dé, que abusou sexualmente de muitos garotos, é acolhido no seio da Igreja sem maiores punições. É um contrassenso. E, também, do ponto de vista do rebanho, uma burrice sem fim. Maria Zita, de 86 anos, sintetizou ao portal G1, com a sabedoria típica dos mais velhos, a realidade que parte da Igreja insiste em ignorar. ‘Ele (padre Beto) é uma pessoa excepcional. Nas missas ele nunca falou uma coisa que fosse contra a religião. Sempre nos ensinou tudo que está na Bíblia. Eu, com 86 anos, concordo que assuntos polêmicos devem ser debatidos’, disse.

O ritmo de perda de fiéis no Catolicismo é forte e crescente. Se continuar a expulsar quem pensa diferente enquanto compactua com maníacos sexuais que mantém sob sua proteção e bênçãos, não será absurdo imaginar um instante em que a Igreja Católica estará reduzida a condição de seita de menor relevância e abrangência. Muito pouco para a instituição que, apesar de seus enormes erros ao longo dos séculos, tem sido referência de valores morais - e, mais importante, de conforto espiritual - para bilhões de pessoas em todo o mundo.

CORRÊA NEVES JÚNIOR
é diretor-responsável do Comércio da Franca jrneves@comerciodafranca.com.br

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