Torpeza

Dirigir está longe de ser uma tarefa complexa. Transitar por ruas tinha tudo para ser uma tarefa simples, prazerosa, segura. Não é.

21/04/2013 | Tempo de leitura: 5 min

O mínimo que se espera de qualquer um é que preste socorro às vítimas, acione os Bombeiros e aguarde as autoridades para os esclarecimentos
O mínimo que se espera de qualquer um é que preste socorro às vítimas, acione os Bombeiros e aguarde as autoridades para os esclarecimentos

‘A covardia é a mãe da crueldade’
Michel de Montaigne,
filósofo francês

Dirigir está longe de ser uma tarefa muito complexa. Nos tempos atuais, em que o esforço físico necessário para manobrar/acelerar/brecar/estacionar se apoxima do zero, com carros dotados, ao todo ou em parte, de direção hidráulica, transmissão automática, freios ABS, vidros elétricos, suspensões inteligentes, GPS que ensina o caminho, sensores de distância que ajudam nas balizas e faróis que se acendem automaticamente, transitar por ruas e estradas tinha tudo para ser uma tarefa simples, prazerosa, lúdica, segura. Não é.

No Brasil, sair de um ponto qualquer e chegar ileso ao destino previsto tem se tornado uma tarefa cada vez mais complicada. O problema tem, em sua essência, duas causas fundamentais: a absoluta falta de bom senso, por um lado, e de princípios éticos fundamentais, como consciência e vergonha na cara, por outro, verificados em parte significativa dos motoristas e motociclistas que trafegam por nossas ruas e estradas. Premiados por uma legislação que protege o malfeitor, esses condutores muitas vezes negam a suas vítimas aquilo que em outros tempos, quando honra e decência eram virtudes, um combatente não recusaria nem mesmo a seu inimigo no campo de batalha: o direito de ser socorrido.

Dois acidentes, acontecidos no perímetro urbano de Franca nos últimos quinze dias, exemplificam de forma emblemática esta triste realidade.

O primeiro acidente aconteceu na madrugada de segunda-feira, 8 de abril. O operador de máquinas Weder Faria, 36 anos, e a babá Natália Almeida, 41, tinham marcado um encontro. De madrugada, Weder foi levar Natália de volta para casa. O casal trafegava pela rodovia numa moto Honda Titan azul quando foi atingido pelo Fiat Strada conduzido por Cléverson de Oliveira Júnior, de 22 anos. Natália Almeida morreu no local. Weder foi socorrido, ficou internado mas se recupera bem. Cléverson Júnior fugiu sem prestar socorro. Só se apresentou às autoridades, acompanhado do pai e de um advogado, depois que foi identificado pela polícia, na terça-feira. Por livre e espontânea vontade ou atormentado pela consciência que, reza o senso comum, todos têm, Cléverson Junior não moveu uma palha.

Na polícia, Cleverson Júnior apresentou uma versão estranhíssima. Disse que a moto ‘invadiu’ sua pista e que, ‘assustado’, fugiu porque pensou que se tratava de um assalto. Não explicou porque, neste caso, não andou mais uns poucos quilômetros e pediu ajuda na base da polícia rodoviária ou, na pior das hipóteses, porque não acionou a PM quando chegou em casa. É bom reforçar uma vez mais: Cléverson Junior só se apresentou às autoridades depois que foi identificado pela polícia, que recolheu partes do seu veículo que ficaram espalhadas pela rodovia.

O segundo acidente aconteceu na terça-feira, 16 de abril, no Recanto Elimar. O caso é bizarro, mas não menos triste. Era por volta de 20h quando a gerente de loja Nayara dos Santos, de 24 anos, trafegava com sua moto Honda CBX 250 Twister pela avenida das Primaveras. Sabe-se lá a razão mas o fato é que Nayara atropelou Marília Ferreira, de 18 anos, que mora no mesmo bairro. Com o impacto, além de Marília, também a condutora da moto foi atirada ao chão. Ambas foram socorridas pelo Corpo de Bombeiros, mas a motociclista sofreu uma parada cardiorrespiratória e morreu minutos depois de dar entrada na Santa Casa.

Num primeiro instante, imaginou-se que Nayara tivesse sucumbido vítima da queda da moto que conduzia. Pelo menos, é o que parecia inicialmente, em versão corroborada inclusive por uma testemunha, a sapateira D.R (cujo nome não escrevo simplesmente porque sua identidade não foi confirmada pelas autoridades policiais), 34 anos. Acontece que a avaliação preliminar dos peritos constatou que os ferimentos de Nayara eram incompatíveis com simples queda - pareciam mais de uma vítima de atropelamento.

Os policiais checaram então a versão das testemunhas e, uma vez mais, encontraram um motorista fujão. Sim, é isso mesmo. Nayara não morreu vítima da queda da moto, mas de um atropelamento que a vitimou na sequência. Quem atropelou? A sapateira D.R., que mentiu descaradamente no instante do acidente. No dia seguinte, quando contou a verdade, tentou justificar-se e disse ter ficado ‘nervosa’ ao passar sobre o corpo que rolara subitamente na frente do carro. Em sua defesa, disse ainda que foi ela quem acionou o resgate dos Bombeiros.

Pode até ter sido mas, de novo, isso em nada reduz a baixeza do gesto. A tal sapateira não falou a verdade porque teve um surto de ‘consciência’, mas apenas e tão somente porque a polícia chegou até ela. Caso contrário, é bastante provável que seguisse com sua mentira torpe. Em tempo: no momento em que atropelou e mentiu, D.R estava com seu filho no carro e com a habilitação vencida. Não consigo imaginar exemplo pior para uma criança.

Qualquer um que dirija está sujeito a se envolver num acidente de trânsito, de maior ou menor gravidade, quer seja na condição de vítima quer seja como causador. Nem sempre a culpa é de quem atropela ou de quem dirige mais rápido. Qualquer acidente pode ter múltiplas causas e infindáveis consequências.

Nada disso tem a ver, no entanto, com o comportamento que cada envolvido adota nos instantes que se seguem ao acidente. O mínimo que se espera de qualquer um é que preste socorro às vítimas, acione os Bombeiros para o atendimento necessário e aguarde as autoridades para os esclarecimentos imperativos. Qualquer outro comportamento, especialmente ir para a própria casa dormir, é coisa típica de gente sem consciência ou caráter. Um tipo de gente que parece ter se multiplicado no trânsito de nossa cidade. Infelizmente.

CORRÊA NEVES JÚNIOR
é diretor-responsável do Comércio da Franca jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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