O veredicto

A decisão do Tribunal recoloca os pingos nos seus devidos ‘is’. De uma tacada só, corrige um equívoco e reafirma a liberdade de imprensa.

10/03/2013 | Tempo de leitura: 5 min

A decisão unânime do TJ comprova o acerto do ‘Comércio’ ao narrar os fatos protagonizados por José Carlos de Oliveira no plantão policial
A decisão unânime do TJ comprova o acerto do ‘Comércio’ ao narrar os fatos protagonizados por José Carlos de Oliveira no plantão policial

‘As prerrogativas do jornalismo devem ser ainda mais protegidas quando a crítica é inspirada pelo interesse público’
Celso de Mello
, ministro do Supremo Tribunal Federal

Foi num fim de ano de 2007 que o plantão policial de Franca acabou transformado em palco de episódios singularíssimos. Tudo aconteceu numa noite movimentada de quinta-feira, 27 de dezembro. Policiais militares haviam detido um andarilho acusado de tentar matar outro andarilho com tijoladas e pedradas na cabeça. Como de praxe, levaram o acusado para o distrito policial, onde o sujeito deveria ser apresentado ao delegado de plantão. Começava ali a sucessão de absurdos que faria a realidade parecer obra de ficção.

Respondia pelo plantão naquela noite o então delegado José Carlos de Oliveira, hoje aposentado. Sabe-se lá por qual razão o delegado implicou com o fato dos policiais terem colocado o acusado dentro da cela. Sabe-se menos ainda porque a simples presença de repórteres no local, como acontece desde sempre em delegacias de todo o Brasil, o irritou de maneira especial. Mas o que desafia a compreensão num nível mais profundo foram as atitudes do delegado José Carlos de Oliveira nos instantes que se seguiram.

Naquela noite, ao ver o acusado pelo crime dentro da cela e perceber que havia dois repórteres acompanhando o plantão, José Carlos descontrolou-se. Enraivecido, mandou que o policial militar retirasse as algemas do andarilho, o removesse da cela e colocasse na rua, aos berros de ‘policinha de merda’.

Assim, sem qualquer motivação razoável, um acusado de crime que estava dentro de uma cela foi retirado, levado para a rua e o PM que o havia detido foi obrigado a esperar, na viatura, até que um outro viesse em seu socorro para, uma vez mais, levar o mesmo acusado de volta ao plantão policial. Tudo isso enquanto o delegado responsável pelo plantão, José Carlos de Oliveira, berrava e gritava com os referidos soldados, com os repórteres e com quem mais cruzasse o seu caminho.

Todos os fatos acima narrados, publicados na edição do Comércio de sexta-feira, 28 de dezembro de 2007, nunca foram negados pelo delegado. Os xingamentos e o comportamento errático de José Carlos de Oliveira foram confirmados pelo soldado em depoimento oficial. Ainda assim, o PM não representou oficialmente nem ingressou com uma ação reparatória contra o delegado. Há quem diga que ele foi aconselhado por seus superiores a evitar atritos com a Polícia Civil. Sem queixa formal, José Carlos de Oliveira não enfrentou nenhum dissabor adicional.

Livre de responder pelos seus atos, José Carlos de Oliveira fez o que poucos poderiam imaginar possível. Resolveu processar o Comércio. Uma vez mais, não negou nenhum dos fatos. Apenas argumentou que a publicação do texto, em linguagem coloquial, gerava a ele ‘danos morais’. O texto que incomodou o delegado dizia que ele tinha agido ‘por puro capricho’ e dado um ‘piti’ no plantão. Além disso, classificava como ‘patacoada’ o que houve.

Surpreendentemente, os argumentos do delegado foram acolhidos em primeira instância e o Comércio foi condenado a pagar uma indenização de R$ 15 mil. Decisões como esta traduzem com clareza quão difícil e penosa é a atividade jornalística. Muitos magistrados, em que pesem sua seriedade e zelo, parecem ter dificuldades para entender que um texto de jornal não é página de processo e que o interesse coletivo deve se sobrepor ao particular, tanto mais quando os fatos envolvem servidores públicos.

Obviamente, houve recurso. O processo foi julgado na última terça-feira, 5 de março, pela Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça (TJ). Passava um pouco das 10h da manhã de terça quando meu celular tocou. Do outro lado da linha, o advogado Guilherme del Bianco, do escritório Moisés, Volpe e del Bianco, responsável pela defesa legal do Comércio, estava emocionado. ‘Vencemos. Reformamos integralmente a sentença de primeira instância’. No TJ, os recursos são votados por três desembargadores. Ganha quem consegue a maioria. Perguntei quanto havia sido o placar a nosso favor. ‘Foi 3 a 0. Três a zero’, repetia, voz embargada, Guilherme del Bianco.

A decisão, além de desobrigar o Comércio de qualquer indenização, determina ainda que José Carlos de Oliveira, como parte vencida, pague as custas processuais e os honorários advocatícios. Muito mais importante que a questão financeira, a decisão do TJ, unânime e exemplar, tem uma imensa carga simbólica. Mostra, de forma clara, que os Tribunais estão mais avançados no reconhecimento da importância da liberdade de expressão não apenas quanto ao direito de informar, mas também com relação ao direito de criticar e opinar, inclusive com o uso de linguagem coloquial. ‘Verifica-se assim, apesar dos termos utilizados, usuais por esses meios de comunicação, apenas foi narrado o que efetivamente ocorreu (...) As críticas permaneceram no limite do aceitável, inexistente o alegado excesso’, afirma o desembargador João Pazine Neto em seu voto. ‘A situação do Autor (o delegado José Carlos de Oliveira) (...) despertou interesse jornalístico e não pode agora pretender indenização pelos fatos a que ele próprio deu causa’, conclui.

A decisão do Tribunal de Justiça recoloca os pingos nos seus devidos ‘is’. De uma tacada só, corrige um equívoco, reafirma os princípios que garantem a liberdade de imprensa e ainda ensina que o problema não é a linguagem usada, mas o fato narrado. Pode-se escrever que o delegado descontrolou-se e, sem razão aparente, mandou tirar da cela um preso, agrediu verbalmente soldados, jornalistas e protagonizou uma confusão no distrito policial. Ou, se preferir, dá na mesma dizer que o delegado, ‘por puro capricho’, deu um ‘piti’ no distrito policial e protagonizou uma ‘patacoada’. O estilo é opcional, desde que o rigor com os fatos seja absoluto e a crítica, pertinente. Se há alguma coisa reprovável nisso tudo, certamente não se trata da reportagem do Comércio. O placar do TJ, por 3 a 0, não deixa margem a dúvidas. É um alento importante.

CORRÊA NEVES JÚNIOR
é diretor-responsável do Comércio da Franca jrneves@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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