Bento, o desiludido

O fracasso no combate à pedofilia parece ser a maior frustração de Bento XVI.

17/02/2013 | Tempo de leitura: 5 min

O fracasso no combate à pedofilia parece ser a maior frustração de Bento XVI, defensor de uma limpeza geral. O alto clero foi bem menos severo do que o Santo Padre
O fracasso no combate à pedofilia parece ser a maior frustração de Bento XVI, defensor de uma limpeza geral. O alto clero foi bem menos severo do que o Santo Padre

‘Quanta imundicie há na Igreja, mesmo entre aqueles que, no sacerdócio, devem pertencer inteiramente a Ele. Quanto orgulho, quanta auto-suficiência’
Joseph Ratzinger,
cardeal alemão, na missa da Sexta-feira Santa de 2005, semanas antes de ser consagrado Papa Bento XVI


Foi na manhã do último 11 de fevereiro, uma segunda-feira insuspeita, durante um consistório - cerimônia comum na rotina do Vaticano - e diante de uma platéia de 70 religiosos que não tinham a menor ideia do que estava para acontecer, que o papa Bento XVI, num discurso de 3 minutos proferido em latim, surpreendeu - e abalou - o mundo. ‘Bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro renunciar ao ministério de Bispo de Roma (...) de modo que, a partir de 28 de fevereiro de 2013, às 20 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, estará vaga e deverá ser convocado, a quem compete, o conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice’.

A raridade do ato por si só já justificaria o tamanho do espanto. A última vez que um Papa renunciou faltavam 84 anos para que o Brasil fosse descoberto por Pedro Álvares Cabral. Foi no longínquo ano de 1416 que Gregório XII deixou vago o trono de Pedro. Ainda assim, as diferenças históricas são imensas. Havia naquela época um cisma na Igreja e três religiosos se autodenominavam ‘Papa’. Houve um acordo - em parte, forçado - para que dois deles reconhecessem Gregório como Sumo Pontífice e, consequentemente, a unidade da Igreja fosse restabelecida. Depois, o próprio é que deveria abrir mão do Trono e convocar um conclave para que um novo Papa fosse escolhido. Assim foi feito. Assumiu Martinho V.

Oficialmente, Bento XVI apontou sua própria fragilidade física como justificativa para a renúncia. ‘Cheguei à conclusão de que minhas forças, devido à idade avançada, não são mais adequadas ao melhor exercício do ministério de Pedro’, afirmou. É visível que a energia de Bento XVI tem se esvaído rapidamente. O porte elegante, os gestos firmes e a voz límpida do cardeal alemão tornado Papa há oito anos são coisas do passado. Bento XVI tem hoje enormes dificuldades para caminhar, alternando ora bengala, ora uma espécie de ‘andador’. A voz surge invariavelmente trêmula, quase sussurada, e os gestos estão muito mais contidos.

Ainda assim, é difícil aceitar que um homem de profunda fé e grande erudição, convertido nos últimos 35 anos num dos maiores doutrinadores da Igreja Católica, fosse se curvar apenas ante a debilidade física. Tanto mais, pela questão religiosa envolvida no ato.

O drama tem a ver com alguns dogmas. Afinal, se durante o conclave os cardeais reunidos buscam inspiração divina e agem de acordo com a iluminação do Espírito Santo, presume-se que tal decisão seja ‘perfeita’. Além disso, se o Papa não falha nunca - em questões de fé, é bom ressaltar - de acordo com os cânones da Igreja, então o escolhido deveria ser sempre alguém capaz de cumprir a missão a ele confiada até o final, já que só poderia ser revogada por Deus. Ou seja, com a morte.

Há ainda o trauma do dogma da ‘indissolubilidade conjugal’. Em tese, o papado é o casamento de um homem com sua Igreja, acontecido por vontade e bênçãos divinas e, portanto, também indissolúvel. Se ao Papa é facultado revogar esse ‘casamento’ através da renúncia, por que seria moralmente menos válido que um homem e uma mulher se divorciassem?

Assim, aceitar a renúncia é implicitamente admitir que parte da equação que fundamenta princípios basilares do Catolicismo pode precisar de ajustes imediatos.

É exatamente por impactos como esses que parece pouco provável que a fragilidade física justifique a decisão de Bento XVI, um conservador que recusa qualquer flexibilidade doutrinária. A quem assiste com atenção seus atos e palavras dos últimos dias, sua real motivação parece lastreada muito mais numa decepção profunda com o ser humano, somada a uma vontade de provocar um chacoalhão em estruturas que fracassou em mudar. ‘É preciso refletir sobre como a face da Igreja é por vezes deturpada por golpes contra a sua unidade e divisões do corpo eclesiástico. É preciso superar individualismos e rivalidades. (...) mas poucos parecem disponíveis a agir com seu próprio coração, em sua própria consciência e em suas próprias intenções’, vaticinou Bento XVI na missa que abriu o período da Quaresma.

O fracasso no combate à pedofilia parece ser a maior frustração de Bento XVI. Apesar de sua posição firme e reta diante dos escândalos que se multiplicaram no mundo todo, humildemente pedindo perdão às vítimas e pregando atuação independente da Justiça, o fato é que as estruturas do Clero foram bem menos severas do que o Santo Padre. Os processos para apuração e punição dos religiosos envolvidos dentro da Igreja não andam graças à proteção de cardeais e bispos influentes, o que muito irritou e frustrou Bento XVI, defensor ferrenho de uma limpeza geral.

Somem-se a isso os recentes escândalos de corrupção no IOR (Instituto das Obras Religiosas, nome formal do Bando do Vaticano) acobertados por outros tantos cardeais poderosos, entre eles o secretário de Estado, Tarcísio Bertone, e acrescente-se a traição pessoal de seu mordomo, Paolo Gabrielle, que foi capaz de subtrair correspondência pessoal de dentro dos aposentos papais e publicar o material de seu abjeto furto, e tem-se uma boa amostra das razões pelas quais Bento XVI parece tão desapontado.

O tamanho da sua desilusão com os homens talvez possa ser melhor compreendido ao examinar o rumo que pretende dar à sua vida. Às 17 horas de 28 de fevereiro, Bento XVI embarcará num helicóptero rumo a Castel Gandolfo, residência de verão dos Papas. É dali que ele vai aguardar o conclave. Eleito o novo Papa, Bento XVI voltará para o Vaticano. Mais precisamente, para o prédio que abriga o convento Mater Ecclesiae, onde pretende viver em clausura. Longe do mundo e, mais importante, longe de tanta gente que o decepcionou. Por perto, só freiras, seu secretário pessoal e o jardim ao qual pretende se dedicar. Cardeal, nenhum.

CORRÊA NEVES JÚNIOR
é diretor-responsável do Comércio da Franca jrneves@comerciodafranca.com.br

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