Vulto histórico


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No final dos anos 60, eu fazia parte de uma turma que, à falta de ter coisa melhor para fazer, ficava sentada nos bancos da praça Barão da Franca ao lado de um pequeno e horroroso espelho d´água feito por Hélio Palermo depois de destruir a praça antiga e suas árvores frondosas, que tinha um apelido impublicável nas páginas deste hebdomadário. Este lugar seria depois marcado pela tragédia, já que um atormentado e infeliz professor da Faculdade de Filosofia morreria ali, após ter se atirado pela janela de um apartamento do alto do prédio Franca do Imperador.

Foi ali que o Clóvis, o Clóvis Larrabure cunhou a frase que lembrarei para sempre. Era uma tarde invernal, o sol se punha e as sombras das árvores, dos prédios e as nossas também se alongavam no piso da praça, um pôr do sol cinematográfico que somente a paisagem do planalto de Franca proporciona.

Quando o vulto do magérrimo Clóvis se alongava cada vez mais pelo chão, como uma escultura de Giacometti, ele lascou a frase lapidar: “eu não quero ser apenas um vulto, quero ser um vulto histórico”. Demos muitas gargalhadas com o Clóvis, com sua verve e humor peculiares. Em seguida, cada um tomou seu rumo e nunca mais nos vimos, principalmente depois que um incidente de percurso mudou sua vida para sempre, tirando-o da faculdade de engenharia que cursava em Barretos.

Acho que ele enveredou por outro rumo, tornou-se um produtor rural ou coisa parecida. Vagamente, lembrava que quando estava na prefeitura local, recebi a visita de uma jovem e bela estudante de arquitetura que disse ser sua filha. Ou seria sobrinha? Faz tanto tempo que não lembrava mais. O fato é que não acreditei muito, mas podia ser verdade, afinal Larrabure havia desaparecido da minha vista desde o século passado e a menina tinha idade para ser sua filha mesmo.

Mas como são diferentes as coisas nestes tempos de internet. Todas estas lembranças vieram porque, pesquisando sobre o Peru, apareceu em minha tela do computador uma foto do personagem que reconheci na hora. Era o Larrabure, com uma barba de profeta ao lado de uma imponente e possante motocicleta, como um John Travolta em Motoqueiros Selvagens. E, logo depois, outra e outra foto, desta vez ele com uma turma de marmanjos no alto da cidadela de Macchu Picchu, capital inca que eu investigava porque quero conhecer. Tomei um agradável susto. Aproveitei para fazer uma consulta simples ao Google, que confirmou minha dúvida. A menina bonita e hoje arquiteta Sara era mesmo a filha do Larrabure e já se tornou mestre pela USP.

Clóvis, como eu, não se tornou nenhum vulto histórico. Ainda bem, pois estamos vivos e continuamos perseguindo sonhos, os sonhos que sonhamos desde garotos. É o que importa.

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