A tartaruga e a cultura de experimentação


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No alto do rio Xingu, nesse poderoso afluente da margem direita do mais poderoso ainda rio Amazonas, viviam os ancestrais dos atuais índios Kuikuro. Por lá tivemos sociedades indígenas avançadas. Há sinais de construção de praças, pontes, represas e canais e até mesmo edificações de vários lagos que serviram para a criação de tartarugas. A carne muito apreciada e a caça fácil fizeram da tartaruga uma importante opção alimentar dos nossos índios.

De lá pra cá, é dispensável dizer quanta mudança sofremos. Reconhecemos que sofremos uma grande influência da culinária indígena, ainda mais pelos portugueses que se serviram largamente dessas culturas. Ingredientes como a mandioca, presente na mesa de todos os brasileiros de norte a sul, são prova disso.

Mas a tartaruga tem um viés diferente. A minha geração cresceu vendo a proibição da caça a tartaruga e sua eliminação como possibilidade gastronômica. Ela, junto das baleias, me parece ter sido dos primeiros animais a receberem proteção do homem. Por isso, por uma sensação infantil, não tenho vontade de experimentar carne de tartaruga.

Mas somos guiados por nossa vontade de experimentar, de ter o mundo a nosso favor e disposto a realizar desde nossas necessidades essenciais até caprichos fúteis. Por obra de nossa grande inteligência vamos construindo, desmanchando, embelezando, desmatando, enfeitando cada ermo pedacinho de chão. Tudo para deixar nossa marca humana na terra, ou embaixo dela, ou acima dela. E assim, transformamos o simples ato de nos alimentar em experiência gastronômica, ou experiência sensorial. Os grandes chefs de cozinha convocam todos os nossos sentidos para a apreciação de suas comidas. Não basta apenas sentir o gosto, devemos cheirá-la, apreciá-la e até, porque não, ouvi-la.

Monteiro Lobato disse: “Comer o que se quer é regionalismo sórdido. Come-se o que é de bom tom comer”. A percepção de nosso desejo de experimentação por parte dos chefs fez o “tom” mudar: de novo, lá no alto do Brasil, dessa vez às margens de outro afluente do Amazonas, o Purus, no Estado do Acre, o branco recria os criadouros de tartarugas-da-Ama-zônia e legaliza seu consumo. Ou seja, ninguém saiu por aí caçando ilegalmente tartarugas. É um projeto sustentável que vem ao encontro da franca expansão da culinária brasileira e a busca pela nossa identidade, e ao desenvolvimento de uma gastronomia de produtos e ingredientes.

Há cerca de 19 modos diferentes de se preparar a carne de tartaruga. Os novos chefs estão encantados! E buscam nos encantar também. Sobretudo os paladares mais exigentes.

O chef Alex Atala está servindo no seu menu degustação dois pratos diferentes com a tartaruga-da-Amazônia. O Brasil a Gosto, restaurante paulistano de propriedade de nossa conterrânea Ana Luiza Trajano, também está servindo um prato com tartaruga. A utilização do animal não é gratuita. Busca-se uma identidade: uma nação se constitui de vários sistemas que materializam o seu conceito. Temos o desejo de ter uma culinária que deverá direcionar o trabalho criativo e que ao final deverá representar a cultura do povo brasileiro.

A tartaruga-da-Amazônia é só mais um capítulo de nossa história. Vi e comi outros bocados de nossa cultura, foi assim com os quadrados de tapioca e a costelinha de porco crocante do chef Rodrigo Oliveira, a rabada e a mandioca preparadas pelo chef Atala, o bacalhau com batata palha, o ravioli de pupunha e o risoto de beterraba lá do Mani.

Porém, a aceitação da tartaruga como alimento esbarra num conflito cultural, pois a consideramos um animal doméstico, simpático, inofensivo. E, após 30 anos de proibição do consumo, há toda uma geração que não considera comer tartaruga parte de sua cultura. Certamente a memória gastronômica dessa geração está muito mais ligada à macarronada, ao frango assado, a maioneses que a tartaruga. 

Mas acho que vale a aventura. Não se come tartaruga como se come pastel. Diante de um prato assim, percebe-se o mundo de hoje e o de ontem. Podemos nos reencantar através do diálogo entre as várias culturas que formaram nosso Brasil.

Dica da semana

Falando de maneira leiga, as ervas são plantas que possuem uma imensa concentração de substâncias aromáticas volá-teis. Embora sejam consumidas pela boca, o sa-bor, que na verdade é cheiro, será captado pelo nariz, através das molé-culas voláteis (aquelas mais leves que o ar - por isso, flutuam). No caso das ervas, “voam” da boca para as vias nasais. Isso explica a sua riqueza de sensações: enquanto a boca capta apenas cinco sabores (doce, salgado, azedo, amargo e sápido), o olfato capta milhares de odores.

E é por essa complexidade que as ervas vêm sendo desejadas, desde os rituais sagrados à cozinha contemporânea. Conseguir extrair seu sabor e conservá-lo é uma arte milenar, mas dá para simplificar.

Jamais use processador de alimentos. Ele mastiga e destrói todas as estruturas das folhas, deixando apenas um gosto genérico de mato. Caso vá cortar, use uma faca afiada, para que o corte seja um golpe certeiro e não um rasgo.

Se o desejo é armazenar o sabor para usar depois, o melhor solvente são os lipídios, já que a essência das ervas são óleos essenciais, ou seja, não solúveis em água. Aqueça uma boa porção de azeite até 60 graus, acrescente as ervas, ainda inteiras. Guarde em frasco de vidro fechado sob refrigeração. 

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